Eu ia montar um
comentário meu sobre o
show de lançamento de
Primavera nos Dentes,
no Rio de Janeiro na iluminada
noite de 31 de outubro
quando surgiu esta
crítica magnífica de Mauro Ferreira do G1,
Os adjetivos da descrição da performance de
Duda são perfeitos.
As fotos estão ótimas.
Coloca um setlist no final.
Só faltou acertar o nome
do Felipe, justamente
quando descrevia os
'sons ciganos ou mesmo árabes’
que extraía de seu
violino, que alternava com a guitarra.
E, claro, faltou meio
ponto no final, hehehe!!
Charles Gavin poderia ter ficado sentado no trono de baterista do grupo Titãs esperando a morte artística chegar. Mas soube abrir mão do ouro de tolo e saiu da banda paulistana em fevereiro de 2010 para se dedicar a outros trabalhos. O retorno ao universo pop como músico foi delineado em 2016, ano em que Gavin formou banda com os músicos Felipe Ventura (violino e guitarra), Paulo Rafael (guitarra) e Pedro Coelho (baixo) e começou a tocar o repertório dos dois fundamentais primeiros álbuns de estúdio do trio Secos & Molhados. Nascia o projeto Primavera nos Dentes. Com a voz de Duda Brack, cantora gaúcha de vivência carioca que lançou um dos melhores e mais urgentes discos de 2015, É, o projeto virou (grande) disco neste ano de 2017 por iniciativa do produtor Rafael Ramos.
Em turnê nacional neste segundo semestre, o show chegou aos palcos da cidade do Rio de Janeiro (RJ) na noite de terça-feira, 31 de outubro, em apresentação que lotou a arena do Sesc Copacabana. E o que se viu na arena circular foi um show ainda melhor do que o álbum lançado somente no formato de LP e em edição digital.
Com doses bem calculadas de poesia e acidez, as letras das músicas dos Secos & Molhados continuam atuais, incisivas. Mas era preciso dar nova forma às músicas para Primavera nos Dentes não soar como clone – ou, pior, um pastiche – do trio formado em 1971 por João Ricardo com Ney Matogrosso e Gerson Conrad na cena alternativa da cidade de São Paulo.
Seguindo o molde do disco produzido por Rafael Ramos, o show em essência deu o peso do rock ao repertório do Secos & Molhados – caminho já evidenciado na segunda música do roteiro, Angústia (João Ricardo e João Apolinário, 1974), e repisado em Delírio (Gerson Conrad e Paulo Mendonça, 1974) e, já no fim, no tom hard de O hierofante (João Ricardo sobre poema de Oswaldo Andrade, 1974).
Como Gavin é exímio baterista que domina o idioma do rock e como o Primavera nos Dentes traz na formação um guitar hero, Paulo Rafael, a transposição das músicas para o universo do rock – entendendo-se rock no sentido mais amplo que alia som à atitude – resulta competente. Só que tocar ao vivo o repertório dos álbuns Secos & Molhados (1973) e Secos & Molhados (1974) era tarefa arriscada porque era preciso oferecer performance à altura da atuação transgressora do vocalista Ney Matogrosso nos palcos. E é aí que Duda Brack contribuiu decisivamente para o êxito estrondoso do show. Além dos dotes vocais, Brack é cantora de grande presença cênica. Tem magnetismo e canta também com o corpo, em movimentos ora teatrais, ora ritualísticos.
Na estreia carioca do show Primavera nos Dentes, a cantora capturou a atenção da plateia desde que apareceu na arena do Sesc Copacabana como uma gata arisca, pronta para fazer jorrar a poesia altiva de Sangue latino (João Ricardo e Paulo Mendonça, 1973). Do início ao fim do show, Brack manteve a alta tensão de repertório que pescou pérolas como Fala (João Ricardo e Luhli, 1973), Não, não digas nada (João Ricardo sobre poema de Fernando Pessoa, 1974) – música do roteiro que não está entre as 11 composições do disco – e Tercer mundo(João Ricardo sobre poema de Julio Cortázar, 1974). Cantora magnética, de visceral potência vocal, Brack precisa somente ter mais atenção com a dicção. Nem sempre foi possível entender o que dizia e/ou cantava, sobretudo quando apresentou a banda.
Alternando-se entre o violino e a guitarra, Pedro Ventura – músico da banda Baleia – contribuiu para evocar sons ciganos ou mesmo árabes (quando o toque do violino evocava o som de uma rabeca). No baixo, Pedro Coelho armou com Gavin a cama para que todos deitassem e rolassem na apresentação de roteiro que incluiu O doce e o amargo (João Ricardo e Paulo Mendonça, 1974), um dos pontos mais altos do show. Poeticamente, a propósito, o cancioneiro do Secos & Molhados diz coisas amargas com doçura. Rosa de Hiroshima (Gerson Conrad sobre poema de Vinicius de Moraes, 1973), que desabrochou climática no show, exemplificou o tom agridoce de parte do repertório.
Até O vira (João Ricardo e Luhli, 1973), única música mais fluida da seleção do Primavera nos Dentes, ganhou corpo no show pela presença performática de Duda Brack em número que irradiou luzes de globo espelhado. Já O patrão nosso de cada dia (João Ricardo, 1973) promoveu instante de beleza quando os vocais dos músicos da banda se harmonizaram ao fim do número.
Como o repertório do Secos & Molhados denuncia desigualdades e opressões, além de defender expressões libertárias, a inclusão no roteiro de Tem gente com fome (João Ricardo e Solano Trindade, 1979) – música que a censura impediu o Secos & Molhados de cantar e lançar em disco – soou natural. Pedido de Ney Matogrosso, como contou Duda Brack em cena, a adição de Tem gente com fome foi o pretexto para reprodução de fala do sociólogo Herbert de Souza (1935 – 1997), o Betinho.
A fala sobre a responsabilidade de cada cidadão sobre a tragédia da fome também se encaixou bem em roteiro que extrapolou o repertório do disco em músicas como El rey((João Ricardo e Gerson Conrad, 1973), Flores astrais (João Ricardo e João Apolinário, 1974) e Amor (João Ricardo e João Apolinário, 1974), as duas últimas alocadas no bis. Até porque fazer um show em 2017 com o repertório inicial do Secos & Molhados, realçando o doce e o amargo do grupo, é em última instância um necessário ato político. (Cotação: * * * * 1/2)
Eis o roteiro seguido em 31 de outubro de 2017 por Charles Gavin, Duda Brack, Felipe Ventura, Paulo Rafael e Pedro Coelho na estreia carioca do show Primavera nos Dentes na arena do Sesc Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Sangue latino (João Ricardo e Paulo Mendonça, 1973)
2. Angústia (João Ricardo e João Apolinário, 1974)
3. Fala (João Ricardo e Luhli, 1973)
4. Não, não digas nada (João Ricardo sobre poema de Fernando Pessoa, 1974)
5. Tercer mundo (João Ricardo sobre poema de Julio Cortázar, 1974)
6. O doce e o amargo (João Ricardo e Paulo Mendonça, 1974)
7. Delírio (Gerson Conrad e Paulo Mendonça, 1974)
8. O patrão nosso de cada dia (João Ricardo, 1973)
9. O vira (João Ricardo e Luhli, 1973)
10. Primavera nos dentes (João Ricardo e João Apolinário, 1973)
11. Rosa de Hiroshima (Gerson Conrad sobre poema de Vinicius de Moraes, 1973)
12. El rey (João Ricardo e Gerson Conrad, 1973)
13. Tem gente com fome (João Ricardo e Solano Trindade, 1979)
14. O hierofante (João Ricardo sobre poema de Oswaldo Andrade, 1974)
Bis:
15. Flores astrais (João Ricardo e João Apolinário, 1974)
16. Amor (João Ricardo e João Apolinário, 1974)
(Créditos das imagens: Primavera nos Dentes em 31 de outubro de 2017 na Arena do Sesc Copacabana em fotos de Bruno Coqueiro)