Por que não vamos lá fora e atravessamos a rua?
disse ele a seus amigos, há 55 anos, neste 8 de agosto.
Essa pergunta, aparentemente bobinha e sem sentido, teria caído em esquecimento total e absoluto se fossem outros o lugar, os personagens envolvidos na cena, e o que aquele ato simples de atravessar a rua representaria para o mundo da música.
O lugar: Estúdios da EMI, em Londres
O dia: 8 de agosto de 1969
Ele: Ringo Starr
Seus amigos: John Lennon, Paul McCartney e George Harrison
A proposta: Atravessar em fila indiana a Abbey Road,
ter o movimento registrado em fotografia,
e ter a fotografia estampada na capa
do último disco dos Beatles,
na minha opinião, o melhor de todos eles,
não sem motivo, o mais vendido de sua carreira
(há controvérisas!).
Estava a maior banda do mundo envolta em dúvidas sobre a capa e até mesmo sobre o nome do disco que estavam acabando de gravar. E era um disco especial, todos sabiam, John, nem tanto. Eles vinham de uma experiência que consideraram frustrada, o Projeto Get Back, em que haviam embarcado numa ideia de volta às origens, e abandonado a batuta de George Martin, o grande produtor e mentor de seus discos até então. Só eles mesmos para ficarem frustrados com aquilo que viria a se tornar o último disco LANÇADO dos Beatles, que acabou levando o nome de Let It Be. Fiz questão de capitalizar o particípio qualificativo acima, para distingui-lo de GRAVADO, que é o que se aplica àquele disco sobre o qual pairava a dúvida da capa, e sobre o qual, aliás, não vou falar aqui, deixo para falar à época do aniversário de seu lançamento, em setembro. Quem faz aniversário agora é a foto da capa, e é sobre ela que versa este pequeno ensaio.
Estava praticamente combinado que eles voltariam a aparecer na capa, como somente haviam deixado de fazer no último LP de estúdio, o famoso The Beatles, conhecido como Álbum Branco, pela total ausência de cor, inclusive no nome, que aparecia em alto relevo. Afora aquele álbum, todos os demais traziam a imagem deles na capa, fosse em foto ou desenho, e era bom para registrar as mudanças de visual do grupo: naquele verão de 1969, John, Ringo e George ostentavam grande cabeleira, e grossas barbas. Somente Paul, que nunca foi adepto do estilo cabelão, sempre optou por um visual mais comportado, estava de cara limpa, sem barba ou bigode. Aliás, até mesmo porque estava morto ... hehehe ... depois explico.
Restava saber aonde tirar a foto. Por uns bons dias, pensou-se em chamar o álbum de Everest, muito devido a uma marca de cigarros fumados incessantemente pelo engenheiro de som Geoff Emerick (que ganharia o Grammy por seu magnífico trabalho naquele disco). E chegou-se a fazer planos para ir ao próprio Everest para tirar a foto, mas a produção seria muito complicada. Dinheiro não era problema, mas acabaria atrasando o cronograma de lançamento do disco. Pensando bem, até que o local seria bastante apropriado, pois era o topo do mundo, exatamente aonde os Beatles se encontravam: no topo do mundo do entretenimento, não havia ninguém mais poderoso que eles.
Num belo dia, Ringo , em sua genial simplicidade, fez a proposta título. Discutia-se o nome do último disco, e como seria sua capa, ideias pululavam, além do Everest acima mencionado, Pirâmides do Egito, Coliseu, falava-se em altos custos, mas Ringo não estava querendo arriscar-se em lugares exóticos, que o obrigariam a comer feijão enlatado de novo, como fez na Índia, e soltou um: “Oh, come on!! Let’s cross the street and call it Abbey Road!!”. Aquele disco seria o último dos Beatles e aquela capa, a mais famosa capa de disco de todos os tempos, ao custo de poucas centenas de libras.
Proposta aceita, Paul fez o sketch ao lado, foi convocado o fotógrafo Iain Mcmillan, que estava de plantão, e saíram do estúdio. A produção teve alguma dificuldade para parar o trânsito, o fotógrafo subiu em uma pequena escada e tirou meia dúzia de fotos. Paul escolheu a que mais lhe agradou. Estava decidida e realizada mais uma capa Beatle. E o disco foi também nomeado Abbey Road, em homenagem à casa que os abrigara nos últimos sete anos, palco de muitas revoluções musicais.
Havia uma história, um boato, que pairava no ar à época: a
suspeita morte de Paul McCartney, em um suposto acidente de moto em 1966, e sua
substituição por um perfeito sósia.
Tudo
o que envolvia, ou fazia menção, ou simplesmente lembrava qualquer um dos
quatro Beatles, na época, era motivo de especulações dos ensandencidos fãs.
Imaginem um boato como este! Variadas evidências, que comprovariam a morte de
Paul, foram encontradas em músicas, declarações, anúncios de jornal, etc. Sei
de algumas delas que só interessam aos mais fanáticos, e que não cabe aqui
detalhar. Restrinjo-me aqui ao mais interessante conjunto delas: as estampadas na capa de Abbey Road.
Bom, se tiver
a curiosidade de checar, pegue o disco na sua discoteca, ou se ainda não tem,
que vergonha, vá imediatamente comprar o CD, pois é impossível você não tê-lo
em sua estante, e note:
- Os 4 estão em fila indiana;
- John segue à frente, de terno branco;
- Ringo a seguir, de terno preto;
- Paul, a seguir, com roupa informal chique, descalço;
- George, finalizando o cortejo, todo em jeans;
- Paul é o único com o pé direito à frente; os demais têm o pé esquerdo à frente;
- Paul carregava um cigarro na mão direita;
- Há um fusca bege descompromissadamente estacionado no lado
esquerdo.
Sua licença
é LMW 2 8 I F.
Não seria
nada além de mais uma bela capa Beatle se os fãs não tivessem usado sua fértil
imaginação para descobrir nada menos do que oito evidências irrefutáveis de que
Paul estaria mesmo morto!
Senão vejamos:
- Os 4 estão em fila indiana, como todo bom cortejo fúnebre, e
iam na direção de um cemitério nas imediações do estúdio;
- John, que segue à frente, de terno branco, era o padre que
lhe proporcionara a extrema-unção (ou o médico, segundo alguns);
- Ringo a seguir, de terno preto, era o agente funerário que
lhe proporcionaria funeral digno (ou o padre, segundo uns outros alguns);
- Paul, a seguir, com roupa normal, mas descalço como todo bom
defunto, pronto para ser colocado num caixão;
- George, finalizando, todo em jeans, um traje simples, como
todo humilde coveiro, que o colocaria na cova;
- Paul é o único com o pé direito à frente; os demais têm o pé
esquerdo à frente. Sinal de que não está neste mundo;
- Cigarro na mão direita? Prova de que não era Paul,
sabidamente canhoto;
- Há um fusca bege descompromissadamente estacionado no lado
esquerdo.
Sua licença é LMW 2 8 I F, que naturalmente, quer dizer:
"Linda McCartney Widow -
Paul would
be 28 years old, IF he were alive"
Pode?!!!!!
Devemos
relevar fato de o ‘I’ do ‘IF’ ser, na verdade, o número ‘1’, como toda boa
licença naquela britânica ilha de miserable weather. Ou ainda, esquecer também
que Paul, se estivesse vivo, ainda não teria completado 28 anos, mas, sim,
estava no 28ª ano de sua vida....
Meros
detalhes!
Em 1995,
Paul, ainda muito vivo, em todas as interpretações do adjetivo, capitalizou uma
vez mais em cima de sua fama de morto. Lançou um disco ao vivo com trechos de
sua fantástica e muitíssimo bem sucedida excursão mundial. A capa do disco
mostra a mesma rua, com um fusca similar àquele, estacionado no mesmo ponto mas
com uma licença 54IS, e ele, Paul, sendo
puxado por uma cadela da mesma raça de sua antiga cadela Martha, que ele tinha
na época do Abbey Road. Deu ao disco o
nome de "Paul is Live". O nome tem triplo sentido:
- "Paul is Live", pois é um disco ao vivo, não
gravado em estúdio;
- "Paul is Live", pois ele não está morto, mas sim
bem vivinho, apesar dos boatos;
- "Paul is Live", pois, além de estar fisicamente
vivo, está também artisticamente vivo, ainda fazendo turnês de grande sucesso e
vendendo muitos discos, 25 anos depois de terminado o grupo.
- Para completar, a licença do fusca é 54IS
pois
- " .... now, Paul IS 54 years old! "
A capa de Abbey Road ficou mundialmente famosa. O citado
fusca bege ganhou notoriedade imediata e começou a passar de mão em mão de
colecionadores. Chegou a valer dezenas de milhares de libras, e hoje está no
museu da Volkswagen, na Alemanha.
Desde o fim dos
Beatles, todo santo dia, ao menos uma pessoa, às vezes dezenas,
preferencialmente em grupos de quatro, repete a coreografia da capa, com pé
trocado do 3º, que normalmente está descalço, e tudo o que tem direito. Entre
elas, o bocó aqui! Estive lá pela primeira vez em 1992. Só que como eu estava
sozinho, tive que esperar por outros três bocós para acompanhar-me na jornada e
um 5º bocó para tirar a foto. E retornei algumas vezes: por menos tempo que eu
tivesse, fosse apenas uma escala do voo de ida ou de volta, eu pegava a Jubilee
Line do metrô, descia na estação St. James Wood e repetia a coreografia.
E deixava,
sempre, minha mensagem no muro dos estúdios da EMI. Claro que nunca encontrava
a mensagem anterior: aquele local virou ponto de registro do amor pelos
Beatles. Cada centímetro quadrado de sua tinta branca é preenchido com
declarações, poemas, citações de letras, Beatles 4ever, fulano esteve aqui,
sicrano ama beltrana, e coisas do gênero.
A velocidade de preenchimento é enorme: a cada três meses, o muro tem
que ser pintado, para começar uma nova série de pichamentos, totalmente legais
e autorizados!
Quem tiver
dúvidas sobre o fenômeno, pode ir ao site da EMI, e procurar a imagem: há uma
câmara permanentemente ligada, registrando a movimentação aquela faixa de
pedestres. Pode estar vazia agora, mas não demora muito e aparece alguém
atravessando e fazendo pose.
E se for a
Londres, não deixe de pagar o seu mico!!!