Não falo nada, pois sou suspeito.
Só digo que Daniel Craig está ótimo, insinuante, cínico, ágil, convincente, um pouco invulnerável demais, mas tudo bem; que Dame Judi Dench arrebenta mais uma vez como M; que Q e seus truques não fazem, de novo, a menor falta (sorry, saudoso Desmond!); que Olga Kurylenko é inacreditavelmente bela, e convence muito bem como Bond Girl parceira; que a trama é mirabolante o suficiente; que o tema é super atual; que os vilões são sérios; que as locações continuam maravilhosas; e finalmente, que o mito está vivo e ainda vai durar muuuuito tempo.
Só isso!!!!
Quer dizer, vou falar sim!
E começo pelo título.
Desde que os produtores anunciaram o novo filme com o estranhíssimo nome "Quantum of Solace" (QoS), fiquei me perguntando como seria o título em português. No letterfoot, seria "Um Pouco de Refrigério", sendo a última palavra usada no sentido de esfriar o sangue, já que a vingança era a mola do espião. Sabia que havia acabado o tempo em que os distribuidores daqui usavam sua imaginação tradutora deslavadamente e transformavam "007 Thunderbal" em "007 Contra Chantagem Atômica", ou "007 Moonraker" em "007 Contra o Foguete da Morte", ou ainda "007 From Russia With Love" em "Moscow Contra 007" (inacreditável!). Outros vieram em que a tradução foi literal e caiu como uma luva como "O Espião Que Me Amava", "O Mundo Não é o Bastante", ou "Viva e Deixe Morrer". No presente caso, se por um lado, a tradução literal era impossível, por outro lado, os produtores estão mais modernos e não iriam aceitar uma tradução ultrajante.
Depois de muito pensar, os produtores decidiram que o título seria "Quantum of Solace"! Simples assim! E explicaram: "Manter o título em inglês foi uma decisão mundial, recomendada pela produtora do filme, e ao assistir o filme você vai descobrir que existe uma razão para isso!", resposta da Columbia Pictures a um email indignado de alguns fãs (me inclua fora dessa!). Acertadíssima decisão, Mrs. Brocolli!
Traduzir "Quantum" iria perder o duplo sentido, já que é o nome da organização criminosa, que parece ser a inimiga moderna da MI-6 (os patrões de Bond), nestes tempos sem guerra fria. Neste novo 007, somos apresentados à identidade da entidade vil que foi a causadora dos infortúnios do agente secreto em "Casino Royale”, o revolucionário retorno do espírito de 007, incorporado em um novo ator, Daniel Craig, que imprimiu um ritmo mais humano e menos fantasioso à série. Aliás, a coisa parece continuar inédita: pela primeira vez, a trama do novo filme é continuação da anterior, com os mesmos personagens (aqueles que não morreram, claro!), na pele dos mesmos atores de "Casino Royale". E não só é continuação como começa alguns minutos depois do final do outro: Bond havia se apresentado ao vilão White com o tradicional "Bond, James Bond", e com cartão de visitas, ele tinha apresentado um tiro certeiro na canela do malvado. QoS começa com Bond levando White para interrogatório, logo após a cordial apresentação, numa perseguição insana, com seu Bond Car mais uma vez destruído. Outras perseguições acontecem, uma delas muito improvável, de avião. Outra sobre as águas do Haiti, difícil de engolir, onde parece que há um campo de força a proteger o espião em fuga, rechaçando os balaços. E outra, muito realista, e que já parece ser a marca da nova era: a pé, no mais puro ‘le parcour’, a sensação do momento, pelas vielas de Sienna, Itália, simplesmente sensacional. Mais ainda por saber que o próprio Craig é quem faz. Ele dispensa dublê em 90% das cenas, o que dá uma autenticidade tremenda à ação. E, claro, dificuldades para a filmagem: ele se machuca de verdade, e tem que passar um tempinho no estaleiro. Ele apareceu dando uma entrevista com um braço na tipóia. Não só as perseguições são arriscadas, também as brigas, numa veracidade estonteante. Um pouco estranho porém, é a velocidade com que as cicatrizes de uma briga quase desaparecem na próxima cena. O MI-6 deveria revelar este segredo à humanidade.
Traduzir "Solace" perderia um interessante triplo sentido: além de resfriar a temperatura do sangue, o tal refrigério poderia aplicar-se ao efeito refrescante da água, que é o principal motivador da ação criminosa (ih, contei!), e, terceiro, lembra, na origem latina da palavra, se é que ela a tem, insolação, que é o que sofrem alguns dos personagens, em longas caminhadas num deserto da Bolívia (Chile, na verdade!).
Essa tal insolação deve ter, aliás, contribuído para a cor da Bond Girl, Camille, uma boliviana, filha de russo, também em busca de vingança, numa repetição do clichê homem-mau-mata-pai-estupra-e-mata-mãe-e-irmã-incendeia-casa-menininha-sobrevive. A cor da heroína surpreende pois trata-se de uma tremenda modelo ucraniana, que foi muito bem selecionada. Seleção que teve a ilustre presença de nossa Cléo Pires, na busca dos produtores por uma beldade latina. Infelizmente não emplacou, mas vamos ter que convir que não dava para encarar aquele verdadeiro Tupolev de saias.
Ponto fraco? Sim, a música! Não que a dupla de compositores escolhida tenha sido ruim, nada menos que Jack White, dos White Stripes, e Alicia Keys. O problema é que eles foram o Plano C! O primeiro compositor a ser convidado foi ninguém menos que Paul McCartney, ele mesmo. Entretanto, ele nem aceitou, nem sei porque, talvez outro projeto em andamento, mas na verdade, tenho a impressão de que ele deve ter tido um pouquinho de paúra: certamente, ele deve querer deixar sua associação com a marca Bond limitada à magnífica "Live and Let Die", grande sucesso, que ele sempre toca em seus shows com efeitos pirotécnicos, e que, inclusive, foi candidata ao Oscar, em 1972. Ele não aceitou, mas ofereceu aos produtores um excelente Plano B: indicou a surpreendente Amy Winehouse. Infelizmente, sempre entre seus momentos de genialidade e delírio, não quis aceitar a responsabilidade. E a música acabou ficando meeira, nem um pouco marcante, pode ser até que eu venha a me acostumar. Ainda bem que o tema de Bond continua lá, a pontuar as cenas de ação.
Alguns bits and pieces :
1. Grande cena: JB participa de reunião durante a ópera Tosca;
2. Destaque tecnológico: a investigação da vida alheia nas telas do QG do MI-6
3. Grande homenagem ao passado: Blackgoldfinger (quem souber do que falo, ganha .... hummm .... ganha .... um cumprimento!);
4. Pequeno desprezo ao passado: a rejeição ao famoso drink "shaken, not stirred", que já foi feita em Casino Royale, e agora confirmada;
5. Grande desprezo ao passado: não vou nem falar, pois ainda estou chocado, mas perdôo, ahnnnn, sei não se perdôo! Não houve nenhuma oportunidade de se ouvir a frase cinematográfica mais famosa de todos os tempos.
Era isto, apesar de as iniciais JB terem sido imitadas pelos criadores de Jason Bourne e Jack Bauer, considero, pelo nível dos imitadores, uma verdadeira homenagem ao seu verdadeiro dono, James Bond, mais vivo que nunca.