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sábado, 13 de setembro de 2008

Ensaiando Saramago


Minha filha leu o livro do escritor nobel português sobre a cegueira branca por orientação da faculdade, Não consigo parar de ler, disse-me ao quarto dia, Não está a atrapalhar outras matérias, Que atrapalhe, parar não posso, estou envolvida. Quando acabou, o filho já estava a ler o livro do autor, da morte e suas intermitências, Pare que vai atrapalhar o da cegueira, a filha mandou-o ler aquele primeiro. Outro que não parou até terminá-lo, agora voltou a ler o outro que dizia, E no dia seguinte, ninguém morre, em sua primeira frase, E tudo despertou-me a atenção para o autor que havia até mesmo escrito um evangelho. Somente decidi-me a lê-lo, entretanto, quando surgiu o filme do diretor brasileiro, falado em inglês, Pai, leia o livro antes de assistir ao filme, Porque, perguntei a ela, É importante estar a descobrir as coisas aos poucos, logo verá, se assistir primeiro, vem tudo de uma vez, deve perder a graça. Assim comecei a fazer e animou-me uma entrevista do diretor brasileiro, logo no comecinho da leitura, em sua promoção do filme, quando contou da opinião do escritor, Acabo de ver o meu livro. Estou tão feliz agora quanto na época em que o terminei. E o velho tinha lágrimas nos olhos. O diretor brasileiro havia tentado comprar os direitos de filmagem há tempos. Negado foi pelo escritor, que acreditava ser impossível filmá-lo, justamente pelas razões expressas por minha filha, e assim foi melhor, pois, agora, depois da projeção internacional do diretor, o elenco é estelar, ainda assim com uma brasileira. Ajudou-me um trailer que vi naquela mesma entrevista, pois então pude colocar algumas faces à leitura, não todas, e tive oportunidade de nele ouvir a frase marcante do livro, Nunca me esquecerei de tua voz, E eu, nunca me esquecerei de tua face, a última dita pela americana atriz principal, que me acompanhou durante toda a leitura em sua sardenta face, leitura que confirmou as palavras de minha filha, e que, além disso, proporcionou-me encontrar um estilo de escrita ímpar, Parece que o escritor nobel português somente aprendeu a usar pontos e vírgulas separadamente, e a desprezá-los quando juntos, e aos dois pontos, e ao de exclamação, e ao de interrogação, e ao travessão, e às aspas, e aos parênteses, e às reticências, Para que, diria o nobel, se expressar-me consigo sem aqueles sinais todos. Penso já estar você meio que atordoadao, mas assim o é lê-lo. E os parágrafos terminam somente quando o assunto em tela se acaba, com diálogos ou sem, há casos de parágrafos durarem duas páginas inteiras, Às vezes, em meio a diálogos, há que se relê-los do princípio para confirmar quem disse o quê, às vezes mesmo não se chega a conclusão. E ele nem se preocupa em separar o por do que, quando se está a perguntar, mais ou menos como escrevi este último parágrafo todo, a saramaguear um pouco. Note-se também a ausência de nomes, Para que, Que importam os nomes num mundo de cegos, Ele sempre se refere aos personagens pelo que são, o médico, a mulher do médico, o primeiro cego, a rapariga de óculos escuros, o velho de venda no olho. O fato é que a leitura é envolvente de per si, pelo estilo, assim como o é a trama, impressionante, questionadora sobre como seria a vida de cegos que não tivessem nenhum ser normal para aproximar-se deles e prover os serviços básicos de alimentação, limpeza, segurança, e depois que ao estilo se acostuma, falta apenas tornar-se familiar a coisas como camaratas, catres, retretes entupidas, autoclismos emperrados, passadeira de peões, engorgitamento de autocarros, e outros, o que difícil não é, e segue-se no espanto a cada página, e não me venham falar mais uma piada sem graça sobre os patrícios, que eles já têm um nobel, e nós, apenas imortais, e não me venham também com histórias de Agora, o que faço da vida, estou velho para fazer o que gosto, já que o autor da obra-prima, e de outras, somente passou a viver da escrita depois que se aposentou como serralheiro mecânico, funcionário público e até mesmo jornalista, aos 58 anos.

           E agora, voltando ao normal, ou ao anormal, na visão do autor, posso contar que o livro/filme de que falei é “Ensaio Sobre a Cegueira”, o autor é José Saramago, os outros livros mencionados são “Intermitências da Morte” e “Evangelho Segundo Jesus Cristo”, o diretor é Fernando Meirelles, o internacionalmente consagrado diretor de “Cidade de Deus”, a atriz é Julianne Moore, e, claro, fundamentais para minha educação literária (e musical), minha filha é Renata, e meu filho é Felipe, numa inversão de papéis que muito me orgulha.
           E, por favor, parem de reclamar dos parágrafos às vezes longos, mas com toda a pontuação necessária, deste pobre amador escritor, que passará a ler  outras obras de Saramago, na medida do possível. Um livro que começa com: “E, no dia seguinte, ninguém morre!”, tem que ser fantástico! Imaginem se, de repente, ninguém mais morresse! Bom? Será mesmo? E depois do impacto deste primeiro ensaio, o que será que me espera de um outro que escreveu, o “Ensaio Sobre a Lucidez”? Está difícil escolher qual será o próximo, provavelmente o que já tenho em casa, assim que meu filho o terminar, ou ainda quem sabe parta para vôos mais altos comprando versães saramagais em inglês ou espanhol, tenho um amigo que leu o autor nesta última e disse-me que mantém-se o ritmo despontuado, não poderia deixar de ser de outra forma, seria um avilte contra o estilo, ih, olha eu aí de novo saramagueando.
Para comprovar o que disse, deixo-lhes uma amostra, com a transcrição de um dos primeiros parágrafos do livro, no intuito de não estragar parte da trama ao revelar situações que serão desvendadas ao longo da leitura, se é que vão lê-lo, mas devem!!!!!
Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo branco, Se calhar a mulherzinha tinha razão, pode ser coisa de nervos, os nervos são o diabo, Eu bem sei o que é, uma desgraça, sim, uma desgraça, Diga-me onde mora, por favor, ao mesmo tempo ouviu-se o arranque do motor. Balbuciando, como se a falta de visão lhe tivesse enfraquecido a memória, o cego deu uma direcção, depois disse, Não sei como lhe hei-de agradecer, e o outro respondeu, Ora, não tem importância, hoje por si, amanhã por mim, não sabemos para o que estamos guardados, Tem razão, quem me diria, quando saí de casa esta manhã, que estava para me acontecer uma fatalidade como esta. Estranhou que continuassem parados, por que é que não andamos, perguntou, O sinal está no vermelho, respondeu o outro, Ah, fez o cego, e pôs-se a chorar outra vez. A partir de agora deixara de poder saber quando o sinal estava vermelho.

O diálogo é entre o primeiro cego e o sujeito que o ajuda e o leva para casa no carro do outro, mal sabendo que será ele o próximo, e depois a mulher do primeiro, e depois o médico que o atende, e os pacientes deste último que estavam na sala de espera, e a mulher do médico ... bem .. paro por aqui, para não estragar mais nada.
O filme, ainda não o vi, mas dizem ser o livro cuspido e escarrado, o que é ótimo!!
           

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