sexta-feira, 29 de março de 2013

Não escrevo mais sobre Beatles - Parte 3

Aqui termina o melhor artigo sobre Beatles que já li
Antes, duas partes:
Parte 1
Parte 2

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Em algumas canções, um ligeiro toque de Lennon fazia a diferença entre o excelente e o genial. A melhor estrofe de We Can Work It Out é de John: "Life is very short / and there's no time / for fussing and fighting my friend". Sem a intervenção cirúrgica do autor de Being For The Benefit of Mr. Kite e Happiness Is A Warm Gun, tampouco haveria em Eleanor Rigby a estranheza surrealista dos versos: "Waits at the window / wearing the face / that she keeps in the jar by the door /Who is it for?". Do mesmo modo, a entrada em cena de John - na voz dos pais desesperados - é indispensável a She's Leaving Home, talvez a mais comovente e perene canção sobre o conflito de gerações e a juventude drop-out. Canção que inspirou o nosso Rubem Fonseca a escrever a obraprima Lúcia McCartney. 

A sombra ameaçadora de Lennon fornecia ainda combustível para os ímpetos rockeiros de seu parceiro e rival. A visionária Back In The USSR traz o humor irônico de John estampado no rosto. Canções como I'm Down e Why Don't We Do It In The Road foram feitas por Paul para mostrar a John que conseguia ser ainda mais primitivo que ele. E Get Back - o melhor rocker de toda a obra dos Beatles - nasceu da (compreensível) irritação de Paul com Yoko e do seu desejo de deixar bem claro quem continuava a ser o dono do pedaço. 

Mas como a dialética é uma via de mão dupla, também o lado suave de Lennon se nutria da presença benfazeja de Paul. A belíssima melodia de In My Life é puro McCartney e gemas preciosas como Girl, Because ou Julia têm as impressões digitais do parceiro por todos os lados, ainda que tenham sido escritas na mais monástica solidão. 
Nietzsche atribui o caráter dionisíaco aos nossos impulsos rebeldes, subjetivos, irracionais, apaixonados, lunares; forças do transe e da intoxicação, que questionam e subvertem a ordem vigente. Em contrapartida, designa como apolíneas as nossas tendências ordenadoras, objetivas, racionais, serenas, solares; forças do sonho e da profecia, que promovem e aprimoram o ordenamento do mundo. Ao se unirem, tais forças teriam criado, a seu ver, a mais nobre forma de arte que jamais existiu. 
Como criadores, tanto o metódico Paul McCartney quanto o irrequieto John Lennon expressavam à perfeição a dualidade proposta por Nietzsche, que ouso traduzir pelos termos Apaulíneo e Johnisíaco. Lennon punha o mundo abaixo; McCartney construía novos monumentos. Lennon abria mentes; McCartney aquecia corações. Lennon trazia vigor e energia; McCartney impunha senso estético e coesão. Não raro, os papéis se alternavam, se complementavam, se fundiam. 
Quando os Beatles se separaram, essa magia se rompeu. John e Paul se tornaram compositores com altos e baixos; intérpretes com falhas às vezes evidentes. Fizeram coisas boas. Deram material para compilações de peso. Mas raramente se aproximaram da perfeição alcançada pelo quarteto. Sem a presença instigante de Lennon, Paul começou a patinar em letras anódinas e baladas açucaradas. Seus rockers perderam a força vital e muitos arranjos deixaram de ser pautados pelo sentido da boa medida. A alma negra embranqueceu. Não se tornou um compositor ruim. Mas se aproximou perigosamente de Elton John e Burt Bacharach. Mesmo Band On The Run parece por vezes um Abbey Road sem dentes. É música de grande qualidade. Mas os Beatles faziam melhor. 
Do mesmo modo, John sofreu com a falta de Paul. Plastic Ono Band, embora genial, é um verdadeiro festival de excessos idiossincráticos. Em Imagine, John ensaia um bem-sucedido retorno à estética Beatle, mas logo em seguida a presença de Yoko irá se impor, destruindo o equivocado Sometime in New York City. 
Ironicamente, o grande disco dos ex- Beatles, a verdadeira obra-prima, acabou sendo All Things Must Pass, o álbum triplo em que George Harrison deglutiu os antigos companheiros de banda, abrindo as comportas de sua produção musical, represada durante uma década à sombra de John e Paul. E foi assim, por estranhos caminhos antropofágicos, que a dialética de Lennon & McCartney brilhou pela última vez.

FIM

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