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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A Day in The Life

Esta canção  é a última do álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

a história do álbum, cenário, assuntos e canções, aqui neste LINK

É uma de 8 canções com História na primeira pessoa

as demais 7 canções de mesmo Assunto e  Classe, neste LINK

Atenção, canções com títulos em vermelho 

são links que levam a análises sobre elas.

13. A Day in The Life (Self Story Song by Lennon /McCartney)

John conta: "Eu li as notícias hoje, caramba, sobre um sortudo que conseguiu a nota. E apesar de as notícias serem tristes, eu tive que rir. Eu vi a foto!"
E assim foi, e também o político se matou dentro do carro (ou o jovem amigo Tara Browne), a cidade inglesa cheia de buracos, e o exército inglês que ganhou uma guerra, algumas notícias de jornal que John leu, e o filme que John viu,  que viraram uma canção sensacional. O refrão "I'd love to turn you on" foi considerado uma ode às drogas (e era!), o que causou o banimento inicial da canção nas rádios, mas logo passou. Paul admitiu que aquela era mesmo uma 'drug song', aliás, disse que Sgt. Pepper's era um 'drug album'. Mesmo assim, prefiro manter a canção nesta categoria, de story song. Na parte em que Paul canta 'Woke up, got out the bed, dragged a comb across my head...', eram também reminiscências da adolescência, como fizera em Penny Lane, porém, também uma história em 1ª Pessoa, afinal depois ele diz: ("I noticed I was late!"). Justificada minha classificação, vamos à história! 
 
As sessões de Sgt.Pepper's começaram em novembro de 1966, logo após os quase três meses de recesso em que os Beatles tiveram, pós-decisão de não fazerem mais shows, como contei no começo deste capítulo (LINK)! As duas primeiras canções atacadas eram obras-primas, Penny Lane e Strawbery Fields Forever, que levaram quase mês e meio para ficarem completas, e seriam lançadas em single. Portanto, obedecendo à convenção do condomínio Beatle, instalada após HELP!, não seriam lançadas em álbum. A que veio em seguida ou quase concomitantemente, era uma canção antiga de Paul, que foi revivida, When I'm Sixty Four. Portanto, chegávamos a quase dois meses e nada de aparecer uma composição nova ao efeito de ir ao novo álbum. E quando veio, foi outra obra-prima, esta que ora analiso, e que foi tão estupenda que decidiram: Esta vai fechar o álbum! 
 
Começou com uma ideia de John, que leu um jornal, pegou o violão e cantarolou o Verso 1, retratado no caput desta análise. Levou o que tinha a Paul, e os dois fizeram juntos o Verso 2, do cara que "blew his mind out in a car" e termina com "Nobody was really sure if he was from the House of Lords". E John se lembrou do filme que ele filmara recentemente, baseado num livro dele mesmo, How I Won The War, sobre uma guerra, e fez o Verso 3, que conta "The English Army had just won the war" e termina com "But I just had to look, having read the book". Sim, o verso terminaria com o livro de John, mas Paul tira da cartola um elemento importantíssimo da viagem que a canção estava se transformando, e acrescenta uma singela linha ao Verso 3, que muitos consideram um refrão, que dizia "I'd love to turn you on". Ah, como essas sete palavrinhas deram problema! Elas causaram o banimento da canção das rádios, como falei ali em cima, mas mais do que isso, e para o lado da genialidade, introduzem a verdadeira viagem que seria a ponte instrumental, sobre a qual falarei mais embaixo. A seguir, veio um complemento, de Paul, que não se pode chamar de Ponte, pois não leva a lugar nenhum, conta outra história, nada relacionada aos versos, melodia e ritmo diferentes, mas que encaixa perfeitamente. Vou chamá-la de Desvio! Nele, Paul acorda, se penteia, desce, bebe um café, percebe-se atrasado, pega casaco, chapéu, e ônibus, sobe, dá uma tragada, alguém fala e ele viaja num sonho alucinógeno.... sim, era uma "drug song". Aí entra uma linda Ponte, em que John parece que acompanha o sonho de Paul, em um tocante vocal, sem letra, apenas uma, um lamentoso "A-aaa-aaa-aa-a", maravilhoso, e ao seu final, ele mesmo segue para o Verso 4, de sua autoria, aquele do "4 thousand holes in Blackburn Lancashire", contados um a um, e aqui, deu bloqueio no letrista, que não conseguia 'fill in the blank' na frase "...holes it takes to _ _ _ _ the Albert Hall", nada demais, ele externou sua dúvida, e um amigo deles, presente, chamado Terry Dooran, disse, displicentemente: "Fill, ué!". O verso termina na mesma problemática frase, com o desejo de 'ligar' as pessoas, que, por sua vez, leva a uma segunda execução da ponte instrumental, a mesma da primeira, ao cabo da qual vem um estrondoso final em MI, sobre o qual falarei na parte musical, que começa agora!! 
 
Antes de consubstanciar a complexidade da canção, passo pelo tradicional papo sobre as rimas, que são uma em cada verso, todas ricas, se fosse em português (1-"laugh-photograph", 2-"before-Lords", 3-"look-book", 4-"all-Hall"),  mais duas no Desvio ("bad-head", "hat-flat"), além de uma interna, como Paul adora fazer "smoke-spoke". E falando em compassos, a quantidade de tempos (time signature) a canção era uma plêiade: Verso 1 - 20, Verso 2 - 18, Verso 3 - 19, Ponte Instrumental-24, Desvio-23, Ponte 2 - 20, Verso 4 - 19, Ponte Final -24. 
 
Foram necessárias 6 sessões de gravação para A Day In The Life, a primeira delas em 19 de janeiro de 1967, dia que ficou marcado na memória de George Martin e Geoff Emmerick, produtores. Era John no violão, Paul no Piano, Ringo num atabaque e George no chocalho, lembre-se bem deste último. Mas o mais importante da sessão foi que John cantou na base, e como cantou John naquele dia!! Chego a me arrepiar... Posso imaginar os quatro Beatles no chão do estúdio, enquanto Martin e Emmerick se entreolhavam na sala de controle (o aquário), perguntando-se: "O que é aquilo?". Em entrevistas posteriores, ambos afirmaram que John havia se superado naquele vocal, que causava "arrepios na espinha", ou "os pelos em minha nuca se eriçavam", o estúdio parecia voar alto na sua voz, devidamente assessorada por um eco fantástico. E aquele foi apenas o Take 1, e houve o Take 2 e o 3 e o 4, em que John, cada um ia superando o anterior! Bem, aqueles eram os 4 versos, todos cantados por John. Note ao ouvir (com fones de ouvidos, claro) que, do início do Verso 1 ao final do Verso 3, John vai passeando por sua mente, da direita para a esquerda!  Eles trabalharam também o Desvio, criado por Paul, só que Ringo passou à caixa da bateria, e Paul nada cantou, estava muito ocupado no piano. Note neste ponto, que a seção dos versos era em Sol Maior (G) num determinado ritmo, e quando Paul começa o desvio, ele vem em Mi Maior (E) e num ritmo mais acelerado! Haja modulação!  E ela veio com outra ideia de Paul.
 
Ele apresentou a ideia de uma sessão instrumental entre o Verso 3 de John e o seu Desvio, e que pensou que teria a duração de 24 compassos, mas ninguém ainda sabia como. Para deixarem o espaço certo de fita, Paul ficou tocando no piano uma nota só, e colocou Mal Evans, o faz-tudo dos Beatles, para contar a cada 4 tecladas (o compasso era 4x4), e Mal foi ta-ta-ta-1-ta-ta-ta-2-ta-ta-ta-3-ta-ta-ta-4-....-ta-ta-ta-13-ta-ta-ta-14-....-ta-ta-ta-23-ta-ta-ta-24, ao fim do qual programou um despertador pra tocar! Esse despertador sobreviveria na versão final, afinal, Paul entra cantando "Woke up, got out the bed". Terminada a sessão, de madrugada, três trilhas estavam ocupadas com a voz de John para posterior seleção dos melhores momentos... 
 
...o que foi feito logo no dia seguinte, abrindo a sessão, que teve também Paul fazendo sua linha de baixo, e teve Ringo, em sua bateria, e teve John dobrando seus vocais naquela espécie de refrão das 7 palavrinhas fatídicas, e teve Paul gravando seu vocal no Desvio (e todo mundo se espantou com a coincidência do despertador com o "Woke up"), que só não foi aproveitado porque ele errou a letra e soltou um "shit", e teve George tentando uma guitarra no final do Verso 1. Você ouve a guitarra na gravação final? Nem eu...   
 
A Sessão 3 teve o vocal final de Paul no Desvio, e também a respiração rápida de John, e o sensacional e enorme melisma da segunda Ponte, modulando de volta de E para G, com John entoando como que um mantra,  Aaaaaaa, passeando por sua mente em sonho (lembre-se que Paul havia "entered into a dream", da esquerda para a direita (ouça com fones de ouvido), cujo efeito seria ainda aumentado por orquestra, posteriormente. Paul melhorou sua linha de baixo, e Ringo foi convencido por Paul a inserir viradas de bateria usando os tom-tom's, o que acabou se constituindo em seu melhor desempenho até então, superando Rain e Tomorrow Never Knows. Foi a última sessão em que Beatles tocaram algo, exceto Paul, que tocaria.... uma baqueta de Maestro!! Para tanto, darei destaque ao próximo parágrafo 
Entre os momentos John (terminando o Verso 3) e Paul (começando o Desvio), há um revolucionário crescendo de orquestra, ideia de John, que explicou o desafio a George Martin, ou de Paul, que estava imerso em movimentos de vanguarda, e teria conversado com John, entenda-se como quiser. O desejo era que parecesse o fim do mundo! John queria uma orquestra sinfônica, de 90 músicos,  Martin reclamou do custo e Ringo veio com a ideia salvadora: "Contratem metade dos músicos e façam-nos tocar duas vezes!". George Martin escreveu uma pauta para cada instrumento com a seguinte regra: a nota mais grave possível no começo da pauta, e a nota mais aguda possível no mesmo instrumento lá no final do compasso 24, e praticamente uma linha reta de notas entre as duas, com a sugestão de ritmo pianíssimo no começo e fortíssimo no final.  Uma semana depois, 41 músicos invadiram o Estúdio 1, a maior das 3 salas, todos eles em trajes de gala, sugestão de Paul, que queria uma efeméride, os técnicos também a rigor, os Beatles e amigos (Mick, Keith e Brian dos Rolling Stones, Graham Nash, Donovan) em trajes psicodélicos. John trouxe enfeites de festa a fantasia, narizes de palhaço, chapéus, perucas, gravatas, para que todos usassem. O gigante Mal passeou pelos músicos para que escolhessem seus aparatos, e eles até que usaram, não sei se por se sentirem pressionados pelo tamanho do provedor das alegorias! E aqueles músicos  eram, apenas, os melhores da cena londrina! Depois, Paul e George Martin aproximaram cada um dos músicos explicando a pauta.

Paul subiu no púlpito, repetiu as instruções gerais de tocarem seus violinos, violas, contrabaixos e sopros, do mais grave ao mais agudo, improvisando livremente no movimento, em 24 compassos e os regeu! Fizeram 4 takes, e todos foram somados,  um por cima do outro, então graças à simples ideia de Ringo, o desejado efeito de 90 músicos, foi quase dobrado: o som resultante era de 164 instrumentos! Após a segunda entrada de John, o crescendo é repetido.
Como Grand Finale, Paul veio com uma ótima ideia de fazer um mantra em Mi Maior com as vozes dos amigos presentes na sessão. Todos toparam, fizeram quatro takes, porque os três primeiros terminaram em risadas. A ideia foi posta de lado! E veio a ideia dos pianos:  numa quinta sessão de gravação, dois pianos de cauda foram trazidos ao estúdio e ocupados por John e Mal Evans (Geoge Harrrison não apareceu), Paul e Ringo dividiram um terceiro piano, vertical, e também George Martin num harmônio. Todos ficaram em pé, para aumentar a pressão na tecla,  e tocaram, em uníssono, um acorde Mi Maior. Foram quatro vezes. A última durou 59 segundos, mas a terceira, que durou 53 segundos, foi escolhida. O movimento é considerado um dos melhores acordes finais de música da história, sempre eles... Um bom lembrete de um leitor: assim que desvanece o som do “grand finale” tocado em pianos, e antes que entre o trecho de ruídos de vozes e instrumentos, os Beatles acrescentaram apitos ultrassônicos somente audíveis por cães. Na época, ouvia-se o uivar dos cães da vizinhança, e ninguém imaginava por quê!!! Era um novo público alvo dos gênios!! E, para completar, John insere ali, depois daquilo tudo, uns sons ininteligíveis, na verdade eram sons captados da audiência daquela sessão orquestral, e tocados em reverso, aos quais os fãs insistiram em atribuir mensagens ocultas. Como cereja do bolo, John... ou seria Paul .... ah, sei lá  ... só sei que não foi George ... ausente de tudo .... bem ... os Beatles tiveram uma ideia final, deixando a última trilha do disco tocando continuamente num loop infinito, o que obrigava o ouvinte da bolacha (sim, só funciona em vinil...) a ir lá parar aquela trapizonga de tocar. Eu me lembro perfeitamente disso!! E eu tinha 9 aninhos.
 
Finalmente, a última sessão teve Paul adicionando um piano! Ah, sim, naquilo tudo, a participação de George Harrison, alheio, com a mente na cultura indiana, foi tocar .... um chocalho!  
 
A canção é a última do disco! Impossível seria ter qualquer coisa após aquele final retumbante e apoteótico! 
 
Ao vivo? Claro que recorreremos aos extraordinários The Analogues. Veja que espetáculo! Claro que não contrataram 164 instrumentistas, nem mesmo 41, mas resolveram a situação. Começam tocando os versos, muuuito bem, com o pianista fazendo a voz de John, muuuito parecida, o baterista imitando Ringo no detalhe, e chegando na hora, os 10 instrumentistas clássicos no palco são ajudados por outras dezenas num telão! O efeito é ótimo! Eu chorei aqui, e ri desenfreadamante! São geniais! Note o detalhe do 'Paul', quando entra o acorde final, pede silêncio, nada de aplausos, para reproduzir os 53 segundos, mas não teve jeito, aos 40 segundos, irrompem-se aplausos. E eles merecem. Viajem com ele, aqui, neste LINK!

ESTAVA TERMINADO 

O ÁLBUM MAIS IMPORTANTE 

DA HISTÓRIA DA MÚSICA!

14 comentários:

  1. Análise de profissional!!!! Muito boa !!!!!

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  2. Perfeito!!!
    Mas na verdade essa música nunca foi tocada ao vivo pelos Beatles e com certeza ninguém conseguiria reproduzir exatamente essa música ao vivo..

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    1. Oi, Cani! Os holandeses do The Analogues conseguem! É de arrepiar. Veja no link que Homero colocou. E ouça na TV ou com fones de ouvido...

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  3. Simplesmente fantástico!!
    Parabéns meu amigo
    Impressionante como john e Paul “ sonhavam” harmonicamente na construção das canções

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  4. Nada a acrescentar, como de hábito. Destrinchou a canção e sua história.
    Concordo com Carlão: John e Paul eram amigos de alma.

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  5. Olá homerix! Gostaria de saber quais sao as suas fontes de referencia. Abraços.

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  6. Dificílimo transmitir o que se passa na concepção e na execução dessa canção, mas você conseguiu com louvor. Parabéns!

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  7. Você faz com que entremos no estúdio...E assistimos tudo de camarote. Adorei George tocando chocalho. Iso porque era esse o instrumento que eu tocava na Bandinha Nova Cap ns escola. Eu tocava maracas também. Puxa, de repente fiquei chique.

    Sobre a letra...O que eu li em vários lugares foi que o homem que morreu no carro era nada menos que o Tara Browne. Ele não se matou. Foi acidente porque não viu que a luz do semáforo já era a vermelha Entrou debaixo de outro carro. "He didn't notice that the lights had changed". Portanto não seria um político. Era riquissimo por ser herdeiro de grande fortuna. As pessoas que chegaram perto sabiam que era conhecido mas sem certeza de quem era...Seria da casa dos Lordes?

    Sobre o filme, eu tenho certeza que foi inspirado num romance do mesmo nome, How I won the war de autoria de Patrick Ryan. Eu não conheço nenhum livro de John chamado How I won the War. Mas não conheço todos os livros dele, é claro. No entanto o filme foi mesmo inspirado no livro que citei.

    Amei a participação de Ringo que eu desconhecia. Enfim, seus comentários mostram como de fato formavam um tipo. Algo raro e maravilhoso.

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  8. Ótima análise! Essa é uma das músicas mais marcantes da minha vida, e na minha opinião o Sgt. Peppers é um dos melhores albuns da história do rock!
    Conheci esse blog hoje e já favoritei hahaha, estou ansioso pra ler as demais análises!

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  9. Ótima análise! Essa é uma das músicas mais marcantes da minha vida, e na minha opinião o Sgt. Peppers é um dos melhores albuns da história do rock!
    Conheci esse blog hoje e já favoritei hahaha, estou ansioso pra ler as demais análises!

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  10. Maravilha poder conhecer as aulas de Homerix que não tive oportunidade de ver na época em que foram colocadas no Blog.

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  11. Caro Homero.

    Quero expressar o quanto gostei da sua análise desta que considero uma das maiores obras de artes musicais. Seu texto oferece uma visão envolvente sobre a criação dessa obra-prima, destacando os detalhes do processo criativo e a riqueza dos elementos incorporados pelos Beatles e sua produção. Você escreve de um jeito como se estivesse lá nos dias das gravações.

    Sua explicação sobre os versos, as modulações e a participação da orquestra trouxe uma compreensão mais profunda da complexidade da canção. Além disso, a inclusão de curiosidades, como o despertador e os apitos ultrassônicos, adicionou um toque interessante à análise.

    Muito obgriado por apresentar de maneira cativante os bastidores dessa música incrível.

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