Um Conto de Natal - by Sérgio Manuel Bandeira de Mello
ou ..... Gico
O trenó despontou no horizonte estrelado, mas era apenas mais um objeto voador identificado, às raias de superexposição, como o aedes aegypti, já cidadão carioca, os helicópteros das autoridades e os pré-datados natalinos.
Lá de cima, Noel falou pra si mesmo: Minha turminha galopa no ar. Ufa! Com os buracos e aquelas estrias de asfaltamento vagabundo pra inglês ver, cheio de presente pra distribuir, não sei não.
Ressabiado, saltou na laje para a primeira entrega. Telhado ali era coisa rara. Conferiu a boneca politicamente correta e, seguindo a cartinha de Bangu, o embrulho da AK 47 de brinquedo.
O bom velhinho compreendeu que seus duendes continuavam insuperáveis. Os baixinhos permaneciam melhores que os coreanos e, apesar dos protestos das ONGs ligadas ao Ministério do Trabalho e Emprego, mais baratos que os chineses.
Alongando seus músculos, em particular o deltóide, motor da articulação úmero-escapular, imprescindível às chicotadas nos animais de tração, o velho, após sacudir a carcaça, parou para um momento de reflexão.
Cofiando a barba, o lapônio da gema admitiu o ódio ao serviço nos trópicos. A sistemática falta de chaminés, aliada, ali, aos vigilantes das milícias e aos pit bulls, inclusive humanos, incomodava. A roupa vermelha desaconselhava a permanência em locais dominados por facções rivais à cor natalina. Na região, ainda tinha problemas para estacionar, pois as renas tropeçavam nas churrasqueiras armadas na véspera de natal. Daí temia ter que sacrificar uma comandada por causa de uma perna quebrada, sinistro que tornaria a chifruda o prato do dia seguinte; na brasa, à gaúcha, ou no forno, como o peru e o frango, mais popular.
Por seu regime de trabalho, faltavam sete séculos pra aposentadoria por tempo de serviço, pois o batente resumia-se a um dia por ano. Concordava que aposentadoria por idade na profissão de bom velhinho era uma aberração, e que o Congresso do Pólo Norte só aprovaria lei neste sentido se muito bem remunerado. Emendas parlamentares ou cargos em estatais, ministérios e autarquias não eram aceitos como moeda de troca no extremo do hemisfério norte.
A noite ia alta. Balas traçantes cruzavam o céu sem UPP; cachorros latiam. Um, não. Esse rosnava com intenções pra lá de suspeitas. Era um doberman, talvez produto do sistema de cotas para cães sanguinários. Encarando os caninos, pensou, outra vez, em entregar pizzas, iniciativa que aceleraria o ócio remunerado, mas que poderia sujar a roupa de gordura, desgastando sua imagem. Já bastava a maldita arteriosclerose para abalar a secular promessa incorporada à assinatura – o que não se esquece de ninguém. Ainda mais no ramo onde falhas representavam penas instantâneas. Mais uma vez o projeto Noel’s Delivery ficaria congelado, à espera duma oportunidade sem arroubos utópicos ou muzzarela.
O velho truque do osso funcionou e, saco nas costas, entrou. Ao chegar à árvore, uma surpresa: os presentes já estavam lá, todos fornecidos por um amigo oculto. Segundo agente oculto paulista que infiltraria a seguir por celular, com a devida autorização judicial, tratava-se de amigo secreto. Em todas as demais casas, a mesma mensagem nos cartões: Pra Fulano, Beltrano ou Sicrana, do seu amigo oculto.
Quando deixava a comunidade, seu celular sem fronteiras tocou. A chamada era a cobrar. Desconfiando de falso sequestro de um duende, deixou tocar para gastar a bateria do suposto marginal. Como a ligação seguinte foi normal, da Lapônia, atendeu. Uma operadora de telemarketing “iria estar disponibilizando” um plano que incluía a demissão voluntária no multicombo para os que ainda trabalhavam com cartinhas em papel, louvável iniciativa para defender o planeta contra a derrubada de árvores.
Depois de esperar vinte minutos na linha, ouvindo Jingle Bells interpretado eletronicamente, autoelogios e sinceros agradecimentos pela chamada, desistiu da opção anteriormente teclada, 9, que lhe dera o direito de conversar diretamente com um dos atendentes. Possesso, desligou na cara da gravação. Todavia, já dera para o símbolo do natal entender que, com o concorrente oculto, tornara-se um item dispensável na suprema festa da cristandade. Estava à beira da expulsória, como os ministros septuagenários, Suprema alegria da base aliada do país em que empacara.
Como as renas precisavam ser abastecidas, parou em Santo Cristo, talvez em função do nome familiar. Escolheu um posto 24h. Por sorte, estavam no Brasil. Havia biocombustível, a energia que se planta. Além do fato de que todas adoravam álcool hidratado, por amenizar a ressaca cambial. Enquanto as renas se fartavam na bomba que bombava, entrou na loja de conveniência pra tomar uma cerveja. Lá encontrou um bêbado, conforme apurou mais tarde, preso no local por falta de táxis circulando, simples medo de dirigir e acabar na cadeia. Assim que o viu entrar, veio com a língua enrolada:
- E aí, Papai Noel? Os veados aí fora deixaram você na mão?
- Não são veados; são renas.
Antes de Jean Wyllis propor o encarceramento do bebum por meio de uma legislação draconiana, o constrangimento pelo claro sinal de homofobia foi quebrado pela mútua simpatia. Em pouco tempo, estavam íntimos, a ponto de Noel mencionar o plano de demissão recém-oferecido pela concorrência eletrônica.
- Velhão, eu não acredito em você. Aliás, em nenhum velho barbudo. Pra você ter ideia, nem no coelho da páscoa eu boto fé, mas acredito no seguinte: se é bom pra eles, é ruim pra você.
A lógica cartesiana convenceu o interlocutor a retomar imediatamente o trabalho.
- Cuidado com os homens. Você bebeu e os veadinhos – quer dizer, as renas - também.
Batata. Papai Noel foi parado numa blitz na Niemeyer. Os PMS davam cobertura aos agentes, que circulavam entre os balões brancos com seus bafômetros novinhos em folha.
- Encosta aí. Documento!
- Você sabe com quem está falando? Sou uma das mais sólidas instituições do capitalismo ocidental.
- Se ainda fosse juiz...
- Não sou obrigado a produzir prova contra mim mesmo. Estamos num estado de direito.
- Tranca o elemento na caçamba e leva pra décima quinta.
- Absurdo! Eu tenho presentes pra distribuir. Até uma tornozeleira eletrônica rosa, pedido vindo em uma cartinha que se tornou pública na tevê. Está aqui! Havaianas, a que não se solta dos tiras!
- Artigo eletrônico? Ah, é? Abre este saco, cidadão! Olha só, tenente! Tudo muamba, “made in Lapland”! É crime federal, cidadão! Vai comparecer numa boa ou vai encarar o MP atrás de uma delação premiada?
Nessa hora, aconteceu um verdadeiro milagre de natal. O bêbado conseguira um táxi àquela hora da noite, e o motorista foi parado.
- Gente boa, libera o velho.
- Quem é você, cidadão?
- Sou amigo oculto do Noel. Se o outro barbudo não sabe de nada, e vocês ainda votam em quem ele manda, por que o maluco de vermelho ia saber explicar todas estas provas materiais contra ele? E é crime federal, vocês não iam ganhar nada com a ocorrência.
- E o que eu falo pros agentes da Lei Seca?
- Diga que é um conto de natal. E que ninguém se corrompe por essa mixaria; que escala mudou pra milhão de dólares. Feliz Natal.