Lançaram no mercado uma super biografia beatle, que, felizmente, deram-me de presente. Com meu conhecimento pretérito sobre o assunto, talvez não a comprasse, eu achava que já sabia tudo. Que bom que se lembraram de mim!
Pensei que, para lê-la, iria demorar bastante, face ao caráter bíblico do enorme volume, de 1000 páginas: talvez eu fosse ler um capítulo, ou um ano da vida beatle, depois passar a ler um outro livro, enfim, calmamente eu daria conta do recado. Estimava que eu saberia 60% do que está lá, que seria bom ler de forma diferente para ter outras interpretações sobre o mesmo tema.
Qual nada! A avaliação inicial foi dramaticamente reduzida para 20%, após a leitura de suas primeiras páginas!
No prólogo, que corre no final de 1960, ele conta como foi o primeiro show do grupo depois de voltar da primeira viagem a Hamburgo, escorraçados pelas autoridades alemãs, alguns momentos de ansiedade por terem ficado parados uns tempos, a luta por uma participação num show, em conjunto com outras 3 bandas, em que receberiam um cachê de 6£ (isso mesmo!), e o magistral desempenho que logo os colocou como a melhor banda de Liverpool, semente para que se tornassem depois a melhor da Inglaterra, depois a melhor do mundo, depois a melhor de todos os tempos, passado e futuro!
E eu não sabia quase nada daquilo!
E a perspectiva de lê-lo em doses homeopáticas também foi imediatamente trocada por uma febre de leitura, poucas vezes experimentada.
Começa pela descrição de Liverpool, e a condição de porto mais importante da Inglaterra, o clima, as dificuldades da população.
Depois, é descrita a vida de John desde os avós, os pais e tios (no caso dele, uma tia muito importante), o namoro dos pais, o nascimento sob as bombas alemãs, sua infância, seus amigos, seus dramas (a morte da mãe, atropelada por um ônibus), seus conflitos, tudo o que contribuiu para transformá-lo no gênio que foi. Parou a descrição de John um dia antes do encontro do Século (daria filme: O Dia em que John encontrou Paul), em julho de 57.
Fala sobre a vida de Paul, com o mesmo nível de detalhes, desde os avós, brevemente, os pais, mais um pouco. Segue com Paul até aquele mesmo momento, conta como foi o histórico encontro no pátio da igreja, que fora combinado por Ivan Vaughn, um amigo comum, o salvador da humanidade do rock. Depois, detalha com o começo do relacionamento entre os dois, o conflito interno de John, quando descobriu um talento igual (ele se achava!!) ou mesmo maior que o seu, e segue com os primeiros encontros para tocar e mesmo compor, até que Paul trouxe George, 6 meses depois, um cara bem mais jovem, mas tocando guitarra melhor que os dois.
Neste momento, pára, e volta no tempo para relatar a vida da família Harrison, desta vez em menos detalhes que as de Lennon e McCartney. Quando ele chega ao momento do encontro com John e Paul, voltou a falar do "presente", agora dos 3 juntos. Segue pelas diversas formações e nomes do conjunto, Quarry Men, John and The Moondogs, The Silver Beatles, as viagens para Hamburgo, até que começam a tocar no Cavern Club, todo meio-dia, por serem a única banda que não tinha nenhum trabalhador (estavam decididos a viver daquilo!), até que seu desempenho chama a atenção de um certo Brian Epstein.
Volta no tempo novamente para contar a história de Brian, um judeu homossexual dono de uma rede de lojas de discos: a família tradicional, os sentimentos de anti-semitismo do pós-guerra, os conflitos de um cara que não podia revelar sua verdadeira face (lembre-se, lá se vão 50 anos!), problemas com a polícia, enfim. Vê nos rapazes, mesmo não sendo um especialista no rock'n roll, que engatinhava, um potencial enorme, um senso de humor, um comportamento no palco, e um desempenho vocal jamais antes observado. Oferece-se para empresariá-los, consegue um teste na Decca, que é recusado pelo 'gênio' de plantão ("esses grupos de guitarra estão com os dias contados!"), depois conversa com George Martin, da EMI garantindo, profeticamente: "Esses caras serão maiores que Elvis Presley!".
Somente aí, então, entra Ringo na banda, pois George Martin não havia gostado do baterista Pete Best. Em nova viagem ao passado, conta a vida do paupérrimo Ringo e seus inúmeros problemas médicos, que o fizeram passar mais de ano internado em hospitais públicos, sua educação claudicante, até que se descobre na bateria.
E, finalmente, somente na página 350, os quatro entram nos estúdios da Abbey Road para gravar o primeiro compacto, em meados de 1962. E é isto que me apaixonou no livro. O autor foi fundo em pesquisas, levou 7 anos buscando fontes confiáveis, em mais de 500 publicações, com o intuito de separar o mito da realidade. E nem sempre conseguiu, mas quando isso acontece, ele fala, e deixa que o leitor decida qual versão melhor lhe apetece. São 12 páginas de bibliografia, 5 de agradecimentos e 130 de notas, dando nome a quem falou o que e quando e onde. Ele foi atrás de amigos da época (e inimigos também) em busca de depoimentos, cruzou informações, referências, enfim fez o dever de casa direitinho, e agora descreve o que coletou, na dose certa.
As últimas 500 páginas, que cobriram a carreira oficial dos Beatles, a partir de meados de 1962, quando lançaram o primeiro compacto, foram como uma viagem a um lugar já muito conhecido, de diversas outras oportunidades, só que desta vez guiado por um especialista, para levar aos meandros de cada lugar, contando os diálogos que rolavam, os pensamentos dos moradores, e chegando inclusive aos detalhes sórdidos.
Seguramente, consolidei meu conhecimento sobre os Beatles lendo este livraço, em tamanho e conteúdo, riquíssimo em detalhes, e muito bem escrito, com pouquíssimos erros. Aliás, usando este exagero de aumentativos e superlativos, lembrei-me que foi o primeiro livro Beatle que li em bom português.
Pude, então, apreciar substantivos como fenômeno, loucura, espanto, histeria, desmaio, frenesi (permitam o francesismo), pânico, tumulto, selvageria, arrebatamento, comoção, polvorosa, balbúrdia, multidão, estupefação, pandemônio, todos atrelados à Beatlemania, estado de espírito que acometeu o mundo de outubro de 1963 a agosto de 1966, aquela data sendo a primeira vez que o termo foi usado pela imprensa inglesa, após um show no teatro London Paladium, e esta última sendo a data do último concerto ao vivo, no Estádio Candlestick Park, em San Francisco. Foram quase 3 anos de situações de amor extremo ao quarteto (muuuuitas vezes materializado ....), testemunhados em ruas, aeroportos, teatros, ginásios, e depois estádios, completamente abarrotados, filas de dobrar quarteirões para comprar ingressos dos filmes e outros espetáculos; gritos de ferir as gargantas à sua simples presença, e muito maiores quando cantavam, e principalmente balançavam as cabeças agitando os cabelos compridos e gritando “Uuuuuuuuu”, ou mesmo se simplesmente sorriam; estratégias para escapar à turba, barreiras de policiais reduzidas a pó, enfim, uma sucessão de demonstrações, que acabou por cansá-los, dando origem ao “basta” californiano. Daquela época, notáveis as descrições dos encontros com o rei dos ringues Cassius Clay (“Sou mais bonito que eles!”) e “The King” Elvis Presley (“Vão ficar aí parados como súditos diante de um rei?”), o ídolo de quem tomaram o trono. A lamentar, a descrição da revolta de algumas cidades conservadoras a uma declaração de que os Beatles eram mais populares que Jesus, proferida, claro, por John, que levou à queima de milhares de seus discos em praça pública, e gerou um imenso desconforto. Desconforto ampliado ao quadrado, e aliado ao perigo, quando tiveram que sair às pressas das Filipinas, por terem se recusado a almoçar com a primeira dama Imelda Marcos, aquela dos 3000 pares de sapato! Enfim, coisas da Beatlemania!
Pude concordar com adjetivos como fulgurante, arrebatador, intenso, vibrante, irresistível, exuberante, empolgante, que emolduravam as críticas às canções dos primeiros LP’s, ‘Please Please Me’, ‘With The Beatles’, ‘A Hard Day’s Night’, ‘The Beatles For Sale’ e ‘Help‘. Depois, os críticos passaram a taxar os rapazes de originais, ousados, requintados, singulares, criativos, audaciosos, complexos, no lançamento dos 2 últimos LPs da época do pé-na-estrada, ‘Rubber Soul’ e ‘Revolver’. Aliás, a mudança do tom havia já começado com ‘Yesterday’, a última canção de ‘Help’, primeira a ter arranjo de cordas em um disco de rock. Foi interessante reler a descrição do processo de composição da canção, de Paul, que sonhou com a melodia, mas levou mais de um ano para terminá-la, primeiro com o temor de que seria um plágio, de tão bela que era, depois, porque não conseguia livrar-se da letra do primeiro verso, que viera logo nas primeiras semanas: “Scrambled eggs ... oh, my baby, how I love your legs ...”.
Pude notar o efeito dos advérbios ampliando a magnitude dos adjetivos, como em ‘absolutamente maravilhoso’, ‘delicadamente eloqüente’, ‘explosivamente criativo’, ‘completamente sintonizado’, ‘inacreditavelmente avançado’ e por aí foi. E notei também a elevação dos adjetivos à categoria de excepcional, sofisticado, ousado, psicodélico, surreal, artístico, inovador, mágico, épico, fantástico, primoroso, inimitável, incomparável em junho de 1967 com o lançamento de ‘Sergeant Peppers Lonely Hearts Club Band’. Depois que os Beatles saíram da cena dos shows ao vivo, eles ficaram meio que sumidos, não davam muita atenção à imprensa, que especulava sobre o fim do grupo, mas na verdade, eles meteram a cara no trabalho, dedicando-se, durante 5 meses, à elaboração do novo disco, bem mais que as 13 horas que dedicaram a ‘Please Please Me’. Bem verdade é que meteram a cara também nas drogas. Se elas impactaram ou não sua criatividade, fica para cada um concluir. O fato é que, com aquele disco divisor de águas, os Beatles colocaram-se definitivamente na história, responsáveis por um renascimento do rock, que, a partir de então passou a ter duas épocas: antes e depois de ‘Sgt. Peppers’.
Pude conferir novamente o poder dos numerais: mais que adjetivos, advérbios e substantivos, são eles que mais impressionam na história dos Beatles. Nos cardinais, a lista vai das unidades ao bilhão, todos números imbatíveis até então, numa carreira de pouco mais de 7 anos, muitos deles não superados até hoje: o equivalente a 15 LP’s; 200 canções próprias gravada; milhares de fãs na recepção em aeroportos e estações; milhares (mesmo!) de garotas satisfazendo-lhes as necessidades, como direi, fisiológicas; dezenas de milhares de pagantes em estádios; centenas de milhares de fãs acompanhando pelas ruas; cada lançamento com milhões de discos vendidos, fossem compactos ou LP’s; dezenas de milhões de espectadores na TV americana, e finalizando com o espetacular numeral de 1 Bilhão de discos vendidos na história, recorde presente no Guinness, este alcançado depois do fim do grupo. Nos numerais ordinais, o mais constante é o primeiro: primeira banda a gravar um LP só de composições próprias (e houve outros 10), primeira banda com todos os membros compositores e cantores, primeira banda a tocar num estádio, primeira banda a lançar um disco com as letras das canções impressas, primeira banda a promover um disco com um vídeo-clip; primeira banda a gravar um sintetizador; primeira banda a ocupar 7 dos 10 primeiros lugares da parada americana; primeira banda a fazer um filme em longa-metragem; primeira banda a usar instrumentos de orquestra, e instrumentos indianos numa gravação de rock; primeira banda a ter um show transmitido ao vivo pela televisão, para os quatro cantos do planeta.
Pude relembrar que os tais quatro sujeitos tinham muitos predicados, mas entre eles não estava a capacidade de serem eternos como grupo. Precipitou as coisas, a morte do empresário Brian Epstein, aos 32 anos. É bem verdade que, sem as turnês, ele tinha menos importância para o grupo, e isso certamente contribuiu para a depressão em que entrou, culminando na overdose de soníferos que o matou. Paul como que assumiu o papel, o que começou a irritar John, que por sua vez nem tinha as condições para sê-lo, dado o teor lisérgico de seu sangue. E foram de Paul as principais idéias que vieram: além do ‘Sgt. Peppers’, o projeto ‘Magical Mistery Tour’, e a idéia do desenho animado ‘Yellow Submarine’. Depois veio Yoko, que encontrou um John enjoado com seu casamento, encantou-o com um papo de alto nível que não tinha em casa, grudou como cola ao beatle, indo com ele a todos os lugares, inclusive ao sacrossanto ambiente dos estúdios, irritando profundamente os demais com sua arrogância, palpites e intromissões, e finalmente acabou convencendo John que ele não precisava daqueles outros 3. Instalou-se um clima terrível entre os 4, disputas judiciais, sobre o controle do imenso patrimônio, que acabou por levar ao fim, em abril de 1970. Não sem antes produzirem seus dois melhores LP’s, o ‘The Beatles’, conhecido por Álbum Branco e ‘Abbey Road’, o que mostrou que eles ainda teriam muito fôlego para produzir antologia juntos, não fosse a chegada daquela japonesa senhora à vida deles, hoje com 75 anos (pode?) e administrando o patrimônio do beatle assassinado.
Pude finalmente admirar o estilo de Bob Spitz, meu guia e autor do livro (para terminar meu relato com um aposto), que quase sempre terminava um capítulo com um gancho, tipo “Mal sabia ele que aquilo era só o começo.” ou “E se não sabiam, descobririam em breve.” ou “Nada voltaria a ser como antes.” ou “Na verdade, eles se preparavam para uma viagem inimaginável” ou ainda “Isto foi um aperitivo do que estava por vir!”. Então, apesar de o livro terminar num clima triste de ruptura, de separação, ele ameniza as coisas com um magnífico gancho final:
“Mas a lenda dos Beatles tinha apenas começado!”