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quinta-feira, 1 de agosto de 2013
QUEM SOU EU? Um conto de Renata Ventura
Quem sou eu? Uma máscara? Uma ideia? Um branquelo sorridente de bigodes e cavanhaque?
Ou muito mais do que isso?
Eu havia nascido em uma linha de produção, sim, mas aquilo não me definia. Eu era apenas mais um entre tantos iguais a mim, é verdade, mas aquilo não me definia. Como qualquer bebê recém-nascido entre tantos outros na linha de montagem do mundo, naquele início eu era um ser sem personalidade aparente, sem propósito aparente, com as mesmas ruguinhas e a mesma cara de rato de todos os outros da maternidade, mas aquilo não me definia!
Ao contrário do que pensavam os enfermeiros, que me tratavam com total indiferença naquele berçário de plástico, eu era um indivíduo e tinha um mar de possibilidades pela frente. Dentro de mim, como dentro de qualquer bebê, pulsava o potencial para a grandeza! Então, por que me tratavam com tanto descaso? Saí da fábrica e fui posto à venda, mas minha situação não melhorou.
No começo, eu aceitava aquela indiferença sem questionar. Afinal, eu era só mais um dentre muitos iguais a mim. Que importância eu poderia ter? Eu era apenas uma máscara de um filme, que quase ninguém conhecia, esquecida na última prateleira de uma livraria pouco visitada. Seção de DVDs
Patético. Tantas possibilidades literárias e eu ali, na seção de DVDs.
Eu era um nada. Um objeto escondido no lugar menos requisitado da livraria.
Quem entrava ali, entrava para comprar livros, não filmes. E eu lá no meio, não sendo nem livro, nem filme; nem nada. Apenas um brinde barato acoplado a um DVD. Que diferença eu poderia fazer no mundo? Que poder eu tinha para mudar minha desagradável situação? Nenhum!
Eu era apenas um combo! Um maldito combo de um filme desconhecido! Todos os dias, os clientes passavam por mim e me ignoravam. Consequentemente, eu e meus companheiros de estante, idênticos a mim, íamos sendo remanejados cada vez mais para o fundo da loja. Não éramos rentáveis e, pela lógica dos vendedores, o que não dá dinheiro, não é importante. No entanto, eu tinha quase certeza de que eu era importante! Eu sentia isso no fundo do meu ser, mas ninguém me via! Ninguém ali sabia quem eu era! Não haviam visto o filme, não faziam ideia do que eu representava. Estavam cegos a mim como estavam cegos aos problemas que enfrentavam todos os dias naquela cidade; entorpecidos pela ignorância e pelo comodismo. Preferiam outras máscaras. Queriam ser Darth Vader, Ronaldinho, Jigsaw, Freddy Krueger, Tiririca... Achavam melhor se fantasiar de palhaço do que de mim.
O que mais se podia esperar do País do Carnaval? Para eles, eu era um Zé Ninguém que nunca aparecera na televisão, que nunca fizera um gol. Eu era muito menos procurado do que as perucas de Neymar vendidas na loja ao lado ou do que as bundas de plástico, que imitavam as das periguetes da TV.
Bundas e futebol.
Aquilo sim dava dinheiro. Aquilo sim era popular. Mas será que popularidade era sinônimo de importância? Eu me recusava a acreditar naquilo, até porque acreditar naquilo significava negar o meu valor! E, se eu não me valorizasse, quem me valorizaria?!
Será que eu era mesmo só um acessório? Uma curiosidade? Apenas mais um brinde para que usassem depois do cineminha em casa? Ou eu era algo mais? A pepita de ouro perdida no fundo de uma caverna escura. Por que motivo eu havia nascido? Para ser um mero adereço no rosto de alguém ou para representar algo maior? Para mudar o mundo, quem sabe?
Seria muita pretensão minha? Acho que não. Todos temos a capacidade de mudar o mundo. Basta escolhermos fazê-lo! Basta nos tornarmos maiores do que os outros acham que somos! Vivemos sendo constantemente subestimados por todos a nossa volta e cabe a nós mudarmos essa situação. Algum dia eu ainda iria provar para eles que eu não era apenas uma máscara! Que eu era algo bem maior do que aquilo! Mas como alimentar tal esperança, se tudo o que eu sabia de fato era que eu estava ali, pegando poeira, há meses?! Eu e meus irmãos de linha de produção. Ignorados,
abandonados, invisíveis.
Era assim que eu vivia: entre o sonho e a decepção. Até que uma coisa inesperada aconteceu.
Primeiro, um jovem de cabelos compridos viera entusiasmado em minha direção e pegara meu vizinho, idêntico a mim. No mesmo dia, mais tarde, um professor de meia-idade fizera o mesmo. Pouco depois, um gordinho nerd comprara o terceiro e uma estudante levara o quarto... E cada vez mais pessoas iam comprando meus irmãos! Descartavam o filme, pegavam a máscara! E eu ali, extasiado, pasmo, sem entender o que estava acontecendo, vendo um a um meus companheiros partirem!
Tantos meses esquecido naquela prateleira e, de repente, tínhamos virado as celebridades da livraria! Não estávamos mais sendo comprados por causa do filme. Muito pelo contrário! O filme estava sendo comprado por nossa causa! O filme havia virado o brinde! O que poderia ter causado tamanha reviravolta?! Um carnaval fora de época?! Um Halloween antes da hora?!
O que toda aquela gente estava querendo conosco, afinal?! Com certeza não era um protesto... Decerto que não. Brasileiros não protestavam. Brasileiros resmungavam sobre seus problemas com os amigos e depois iam assistir futebol!
Foi então que alguém me pegou e eu quase explodi de tanta ansiedade. Era uma jovem. Não devia ter nem 18 anos de idade. Arrancou-me da prateleira e me levou para o caixa com uma pressa e uma voracidade que eu nunca havia visto antes, rasgando a embalagem numa urgência espetacular enquanto o vendedor contava o dinheiro. Vencido aquele obstáculo, jogou o DVD na bolsa da amiga e me tocou pela primeira vez, como se estivesse acariciando um objeto cobiçado de sua coleção particular.
Sem sequer esperar pelo término da transação, colocou-me no rosto, dando pulinhos de entusiasmo e pedindo para que a amiga tirasse uma foto nossa com seu celular. Depois, saíram as duas correndo pela porta da livraria, e eu ali, vendo tudo pelos olhos dela. Empolgado, extasiado, maravilhado! Eu tinha um propósito! Aquelas meninas tinham um propósito, uma direção! E o clima no ar não deixava dúvidas. Era clima de mudança, de revolução!
Eu não podia acreditar. Era verdade! Eu finalmente ia cumprir os desígnios para os quais eu fora criado! Eu não estava cabendo em mim de tanta emoção. De tanta alegria. Eu ia ser importante! Eu ia ser realmente importante! Eu ia mudar o mundo junto com aquela menina!
E quando as duas viraram a esquina e se misturaram àquele mundaréu de gente protestando, as lágrimas dela se tornaram as minhas lágrimas. E, através da boca dela, era eu quem estava berrando! “Vem pra rua, vem!!! Ficar em casa não ajuda a ninguém!!! Hoje eu tô feliz!! Saí na rua pra mudar o meu país!!!!”
Eu nunca me sentira tão incrível. Tão realizado. E eu não era o único! Ao meu lado, dezenas de meus irmãos berravam o mesmo grito! E, no meio daquela multidão de rostos, de risos, de sonhos, nós nos olhávamos felizes, percebendo que éramos importantes ali. Cada um de nós era importante.
EU era importante...
Mesmo eu sendo só mais um, dentre os anônimos.
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Este conto faz parte de um ebook feito pelo Skoob, uma comunidade de leitores na rede. Outros 19 contos estão lá. Se quiser conhecê-los, faça o download, abaixo!
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Homerix,
ResponderExcluirMuito bom o conto da Renata. Um exemplo da perseverança a lograr uma virada de jogo, quando se tem um propósito, uma direção. algo que o Peixe somente conseguirá se destituir a atual diretoria...
PERFEITO PARA O MOMENTO, importante para completar o Arsenal do Patriotismo.
ResponderExcluirHomerix, acabei de ver que a autora deve ser uma Trekker, para "pixar" o Darth Vader! :-)
ResponderExcluirMas está ótimo. Ah, espero que a jovem tenha guardado a máscara com muito carinho, e não descartado.
Ricardo Haddad