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quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Dia da Consciência Pesada, digo, Negra

Mais um dia de lembrar!!

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Por que eu era contra....

Por que eu balancei....

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No dia 20, celebra-se em cerca de 1.260 municípios, de 18 estados brasileiros, em 6 deles com Lei Estadual (todos os municípios), o Dia da Consciência Negra, o dia em que Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares foi morto, em 1695. Desde 2011, um decreto presidencial diz que é facultativo a cada município adotar ou não o dia como feriado. Interessante notar que o estado com maior número de municípios aderentes é o Rio Grande do Sul, com mais de 500, e que a Bahia, estado em que se encontra uma das maiores concentrações de habitantes da raça negra, tem apenas 3.... e entre eles não está Salvador, QUE É A CIDADE MAIS AFRICANA FORA DA ÁFRICA!

MINTOOOOOO!!! 
A PARTIR DESTE ANO DE 2024, 
É FERIADO NACIONAAAAL


Zumbi era líder de uma espécie de reino que chegou a ter o tamanho de Portugal, no interior do estado da antiga Bahia, onde se abrigava os escravos fugidos. Apesar de haver controvérsias sobre seu comportamento como líder, afinal dizia-se que ele mesmo acabou tendo escravos no auge do poder, não há dúvida de que é um exemplo de resistência a ser celebrado. Afinal, a causa pela qual lutou é uma mancha na História do Brasil. Nosso país foi a segunda maior nação escravista da história moderna, o último a abolir a escravidão, o penúltimo país das Américas a abolir o tráfico negreiro, e o maior importador de escravos de todos os tempos. Muitos dizem que o país não seria tão grande como é não fossem os escravos, mas isso não permite que se admita a forma como tudo foi feito.

Achava um exagero fazer um feriado por causa desse motivo, mas mudei em 2012, quandoli 1808 (comentei sobre o livro neste post), balancei. Fiquei enojado com o jeito que tratávamos os escravos, e não temo em repetir o que escrevi, agora...

Nunca na história deste planeta apareceu outro país que mais se tenha dedicado ao sequestro de gente para trabalhar de graça e contra a vontade, como o nosso. Foram quase 400 anos sem sair de cima. Tivemos aqui 10 milhões de escravos negros. E aí vem uma estatística impressionante: isso representa 45% do número de nativos que foram tirados de suas tribos. O restante sucumbia, ou no traslado da tribo ao porto, ou na prisão aguardando a deportação ou na viagem oceânica em condições sub-humanas, ou na chegada enquanto aguardavam o destino final, em verdadeiros depósitos de gente. A descrição das condições da viagem são de arrepiar:  
(trecho do livro) "Os navios negreiros que chegam ao Brasil apresentam um retrato terrível das misérias humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto possível. Suas faces melancólicas e seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para encher de horror qualquer pessoa não habituada a esse tipo de cenaMuitos deles, enquanto caminham dos navios até os depósitos onde ficarão expostos para venda, mais se parecem com esqueletos ambulantes, em especial as crianças. A pele, que de tão frágil parece ser incapaz de manter os ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os portugueses chamam de sarna 
Sendo assim, se tivemos 10 milhões de escravos, numa continha rápida, isso significa que 11 milhões de seres humanos foram assassinados, sim, isto caracteriza um assassinato. Mais que isso, pela dimensão, caracteriza genocídio!! 
Isso sem contar os que foram assassinados aqui mesmo, enquanto já possuídos por algum senhor. A forma como eram tratados por aqui..... Marcados como gado, comercializados  como gado, açoitados a cada falha: 

(trecho do livro) "...recomendava-se que não se ultrapassasse 40 chibatadas, mas há relatos de 200, 300 até 600 açoites num só castigo.... as costas ou nádegas ficavam em carne viva ... numa época sem antibióticos, havia risco de morte por gangrena ou infecção generalizada, e o que se fazia, banhava-se o escravo com uma mistura de sal, vinagre e pimenta malagueta numa tentativa de evitar a infecção... "
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Acréscimo de 2019
Mais um número terrível, revelado por Laurentino Gomes no Bial, sobre seu novo livro (o primeiro de uma nova Trilogia) Escravidão. 
Diz ele que, na média, durante os 350 ANOS de escravatura no Brasil, 14 negros POR DIA viraram comida de tubarão, o que no inconsciente coletivo da espécie, mudou seu comportamento como cardume, porque perceberam os navios negreiros como boa fonte de carne.... Os negros pulavam dos navios para se matarem, ou para tentarem escapar, ou cadáveres eram jogados ao mar, porque muitos morriam de banzo (saudade) ou doenças que contraíam nos navios, ou mesmo antes, durante a espera pelos navios, em ambientes imundos e apertados.

 

Acréscimo de 2020
Entrei numa onda de ler poesia clássica que começara em 2019 com A Odisséia de Homero (o outro).
Ano seguinte, continuei e fiz resenhas em versos, na métrica de cada autor, muito orgulho delas tenho (LINK nos nomes)
Li Os Lusíadas de Camões
Li A Divina Comédia de Dante, 
Li Navio Negreiro de Castro Alves, do qual extraio esta estgrofe, de minha autoria.

 Canto III (1 sextilha simples, versos dodecassílabos, rimas AACDDC)


Aí então cai a ficha, o eu-lírico percebe

Que nos porões ocorre o que não se concebe.

Canto III, seis versos, começa a falar da dor,

Dodecassílabo, descreve o poeta o espanto.

Ao findar, descrevo aqui o seu triste canto:

“Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!”

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Portanto, amigos, respeito Zumbi, que lutou contra tudo isso aí de cima.

Homerix Com a Consciência Pesada Ventura

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

O bolso ou a vida


Escrevi este texto há 17 anos...
(notem o modelo do celular da foto)
Hoje, algumas mulheres reclamam! 
Acham machista!
O que acham?
Felizmente, a grandíssima maioria delas adora!
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Dia normal de trabalho, você precisa discutir com uma colega sobre um assunto importante, você sabe o ramal dela e liga direto. 1, 2, 3, 4 toques, entra a secretária eletrônica. Pelo número de toques, você percebe que ela não está na sala, mas você não deixa mensagem, pois tem urgência. Você vai pacientemente ao celular, procura no catálogo pelo celular dela, encontra e liga. 1, 2, 3, 4 infindáveis toques, às vezes a voz mecânica entra. Você xinga, mas a voz não está nem aí, continua falando como se nada tivesse ouvido, mas desliga antes de deixar o recado. Você vai ao catálogo da empresa, e procura por algum ramal do setor ou departamento em que ela trabalha, para encontrar a secretária ou alguém por perto da 'baia' dela (ah! a beleza da vida corporativa!), de repente ela está logo ali, quem sabe você dá uma sorte. Alguém atende e você pergunta por ela, aí vem: “Ela já chegou, sim, estava por aqui neste momento, aguarda um pouquinho”. (muito solícito, mas a adrenalina vai aumentando...).  1, 2, 5, 10, 20 insuportáveis segundos, volta o colega de boa vontade: “Ó, ela saiu da sala, mas não deve ter ido longe, pois ela deixou o celular na mesa, deve ter ido ao banheiro!” (a pressão sobe ao vermelho!!). Ora, ora, por que diabos ela tem um celular se não anda com ele? Você, então, procura manter a calma e pede que o simpático colega avise à querida colega, quando ela voltar de não sei onde, que você precisa falar urgente com ela!

Aí, você se lembra imediatamente da insolúvel incompatibilidade entre mulheres e bolsos. E até tenta compreender, onde já se viu roupa de mulher com bolso? Não permitir-se-á nada que ameace a silhueta mantida pela calça justinha, delineando as formas, enfim, sabe-se lá!! Algumas peças de vestuário até contam com aquele simpático e prático compartimento, feito para abrigar pequenos utensílios que podem vir a ser úteis em algum momento do dia-a-dia, o jeans, por exemplo, mas, invariavelmente, aqueles bolsos estão lá só para enfeitar, vaziozinhos, como se não existissem. O bolso é uma figura desprezível na vida da mulher. Em camisa, então, nem pensar, o que é totalmente justificável!
Em outra situação, você a procura no celular, ele toca, toca, toca, se esgoela de tocar e nada. Você repete a tentativa, uma, duas vezes e desiste. Quinze minutos depois, ela te liga: “Oi, você ligou???!!! Tinha 3 chamadas perdidas no meu celular! É que eu estava no almoço e, com a barulheira do restaurante, acabei não ouvindo, pois ele estava na bolsa!” (... me tira os tubos!!). Não adianta, pode botar no volume que quiser, ligar o vibra-call no nível ‘terremoto’, que não vai dar resultado, a bolsa está lá na cadeira vazia, junto com outras cinco companheiras, igualmente abandonadas!
Entra então a personagem, esta sim, onipresente na vida feminina, a bolsa
Uma letrinha só diferente na escrita, mas quanta diferença! Um, rejeitado, a outra, inseparável! O que seria das mulheres sem suas queridas bolsas? Documento, carteira, talão de cheque, remédios para variados fins, maquiagem, escova, chaves, creme para as mãos, agenda, i-pod, lenço, óculos-de-sol, pen-drive, álcool-gel, pinça (veja abaixo uma situação em que fui salvo por uma bolsa de uma desconhecida!), guarda-chuva, enfim a mais variada quantidade de badulaques, tudo vai naquele sumidouro. Chego a lembrar-me de minha tenra infância, da bolsa da Mary Poppins, de onde saía até abajur. Isso tudo tem que mudar de lugar naquela hora da manhã em que todos têm pressa, sabe, com o marido esperando, já com o carro ligado. Sim, porque claro, impensável é que se use a mesma bolsa dois dias seguidos. Então, além da dúvida cruel sobre  'qual bolsa combina melhor com minha roupa?', que toma alguns minutos, senão dezenas, tem o tempo gasto de mob/demob, que consiste em remover os objetos da bolsa de ontem e colocá-los na bolsa de hoje. O que não impede de ouvirmos, meia hora depois: 'Ih! Esqueci dos óculos na outra bolsa!'


Na bolsa, está, inclusive, o querido celular: não adianta a caixinha do bichinho vir com prendedores de cinto, penduradores para pescoço, ou outra solução qualquer para carregá-lo, o destino final de todo celular feminino é lá, afogado junto com as mil e uma outras utilidades do universo feminino. O que provoca também, muitas vezes, aquelas ligações misteriosas, provocadas por algum daqueles objetos contundentes, um batom, um chaveiro, sei lá, que acaba acionando o último número chamado. Ou seja, além de não serem atendidos, porque afogados, eles ligam sozinhos, porque afogados! Surreal....

            Houve época em que homem também usava bolsa, a tiracolo ou, ainda, na forma da indefectível pochete, hoje meio fora de moda (eu usei ...). Ainda passamos pelas carteiras, que carregávamos na mão, facílimas de serem esquecidas nos mais variados balcões. Hoje, concentramos nossas necessidades diárias nos queridos bolsos, em nossas confortáveis calças, em nossas sociais camisas. Vamos desconsiderar a moda adolescente de ter bolsos até à altura dos joelhos, sabe-se lá o que guardam lá, fiquemos só nos tradicionais. A gente se lembra da utilidade dos bolsos quando viaja de avião, que bem faz um bolso numa camisa! 

Depois, vem a multiplicação do efeito benéfico: o paletó, com seus cinco bolsos entre externos e internos, recheados de apetrechos de viagem. O paletó é a bolsa do homem, utilíssimo em viagens, mormente as internacionais. Bilhete (eletrônico ou papel), passaporte, dinheiro, cartão de embarque, ticket de bagagem, cartões de visita, formulário da imigração, da alfândega, pen-drive, caneta e, claro, o inseparável celular, todos confortavelmente acomodados no paletó, para passar facilmente na caixinha do raio-X. E cada um no seu lugar, facilmente localizável, bem diferente do visceral dilema feminino ao procurar qualquer coisa na bolsa. A única coisa que se tem certeza quanto a pertences em uma bolsa, é a de que eles entraram lá; agora, encontrar e extrair de lá, exatamente o que se deseja, é uma história bem diferente. A não ser, claro que se apele para aquela radical chacoalhada de cabeça pra baixo, espalhando o conteúdo sobre uma superfície livre. Deixo aqui um alento para o inseparável apetrecho, tenho que admitir: nós, homens, invariavelmente, vamos precisar, alguma vez em nossas vidas, de alguma coisa não temos à mão, e as bolsas delas estarão lá para nos salvar!

Sei que a mulher de hoje conquistou um mundo muito maior do que cabe em sua bolsa, mas permito-me esta análise levemente crítica sobre o acessório indispensável para uma enorme maioria delas!!!
E, na verdade, nas diferenças é que mora a beleza. Se as mulheres não usam bolsos, é para ficarem mais elegantes, seja para nós, seja (quem sabe, principalmente) para as outras mulheres. É assim que as conhecemos e assim que as amamos. E que continuem assim. Mas, ao menos, que encontrem uma solução compatível para que sejam encontradas neste fundamental meio de comunicação do mundo moderno.
            Vida longa à classe e à elegância feminina!
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Ah, sim, a situação em que fui salvo decisivamente por uma bolsa apetrechada!

A pinça salvadora!



sábado, 2 de novembro de 2024

Finados levou a Memórias

Em 2 de novembro de 2019, Dia de Finados, 
lembrei de meus finados de primeiro grau...
Minha mãe Iracema, 1975 
Meu pai Saul, 1986 
Meu sogro Antônio, 1992 
Minha madrasta Ely, 1997 
Minha cunhada Nídia, 1998 
Meu cunhado Carlinhos, 2008 
Meu irmão Flávio, 2015 
Minha sogra Zulmira, 2016 
E vamos parar por aí!!

E escrevi sobre eles...

Hoje é hora de relembrá-los...

Mira, Antônio, Carlinhos, 1982
Seu Antônio, Dona (Zul)Mira e Carlinhos foram minha segunda família, e me ensinaram muito sobre esta e sobre outras vidas ... com eles passei a ser uma pessoa melhor. Seu Antônio se foi aos 73 anos, vítima de câncer no pulmão, apesar de ter parado de fumar aos 49, quando se aposentou para poupar Dona Mira no cuidado do filho. Dona Mira, aos 93, vítima de falência dos órgãos gástricos, e o Carlinhos, aos 55, por complicações renais, deixando um vácuo enorme em nossas vidas. 

Escrevi sobre eles e a vida de dedicação dos pais em 2007, em um post que não me canso de divulgar... Quem ainda não conhece, ou deseja reler, é só clicar aqui.

Sobre minha família original, eu nunca escrevera, até porque eu não tinha o hábito, que começou em 1997, com um artigo sobre Beatles, claro...

A lista que fiz no Facebook, entretanto, despertou-me a comichão e fui buscar nas memórias o que foram aquelas pessoas na minha vida. A ordem de lembranças acho que foi natural... comecei por minha mãe, que deixou este plano há 45 anos, quando tinha apenas 52.


Iracema - Aos 19 anos
De Dona Iracema, tenho poucas lembranças. Foi sempre dona de casa, e tinha classe, acompanhou a subida social de meu pai com louvor, lembro dos penteados dela com laquê, e sempre elegante e bem vestida. Lembro-me de chás que fazia com as amigas. Uma sua contemporânea, bem mais jovem, declarou, para mim: "Sim, elegante, simpática, uma mulher à frente de seu tempo, o que nos permitia, apesar da diferença de idade, termos longas conversa quando nos encontrávamos, geralmente no cabeleireiro que frequentávamos e que ficava sobre o Cine Independência. Tinha um grande carinho e admiração por ela!". Me emocionei quando li... Aliás, esse 'à frente de seu tempo' fez-me lembrar um comportamento lá de casa que eu só via lá em casa. Eu e Flávio não nos dirigíamos a eles por 'Senhor' e 'Senhora', era 'você' pra lá, 'você' pra cá. Não via isso em meus primos, amigos, e depois que ganhei minha segunda família, também não vi. Não sei se isso é bom ou ruim, errado ou certo, mas é certo que hoje em dia, esse tratamento menos formal acho que é mais comum, portanto, atina-se ao fato de ela estar alguns anos à frente.

Iracema era a mais velha de seis irmãs, filhas de espanhóis, os Vasques de meu nome. Dizem que era mais a bonita delas, mas que não se comente isso com as irmãs. Casou-se aos 19 anos com meu pai, e teve meu irmão menos de um ano depois. Segundo consta, engravidou quatro outras vezes, tendo aborto espontâneo em três delas, até que euzinho vinguei, 13 anos depois do Flávio(*), fruto da insistência. Não conheci avós, de nenhum dos lados, temporão que fui. Lembro que teve uma época que subíamos a Serra do Mar uma vez por semana pra minha mãe posar para um pintor, que fazia seu retrato a óleo, muito chique. Ficou lindo, né! Infelizmente, o retrato original perdeu-se ao longo das décadas e mudanças da vida, uma pena... na verdade, uma vergonha, imperdoável! Obrigado, prima Valéria, por encontrar essa foto preciosa. Grande recordação!! Minha mãe era muito diligente e salvou a vida de meu primo Marcos Cézar quando ele se engasgou, perdia o ar, minha tia Ruth estática, ela não teve dúvida e meteu os dedos na garganta e retirou a espinha de peixe que lhe bloqueava. Esse mesmo primo, noutra ocasião, prendeu o irmão menor num quartinho de casa, que ficou nervoso e deu um soco na janela de vidro, ficando todo ensanguentado, a mãe dele estava a tratar do avô no hospital, deixara os dois filhos sós em casa, Marcos discou o nosso telefone 47054, que sabia de cor, para emergências, Tia Iracema, a Mulher Maravilha da família, se materializou lá, fez um torniquete, levou os dois ao mesmo hospital. Próxima cena, minha tia Ruth descendo as escadas do hospital e quase desmaiando ao encontrar a irmã com seus dois filhos, um deles se esvaindo em sangue adentrando ao recinto. 


Após suas Bodas de Prata, em 1969, quando inaugurei meu indefectível terninho de veludo marrom que repetiria em algumas ocasiões, Dona Iracema partiu com meu pai para uma viagem de volta ao mundo, mas quando voltou, já não era mais a mesma. Segundo contam, já na cerimônia do casamento do Flávio, um ano depois (eu de novo com meu terninho de veludo marrom), teria mostrado alguns momentos de ausência. Começávamos a perdê-la para a doença no cérebro, até que algum tempo depois começaram a entrar enfermeiras em casa para cuidar dela. Lembro de visitas em casa, de um renomado psiquiatra. Por longos anos, manteve um estado catatônico, talvez hoje fosse diagnosticada  com Alzheimer, mas o que a levou daqui foi uma pneumonia, e ela se foi sem ter a menor ideia de que eu cursaria a Escola Politécnica da USP e seria engenheiro. Uma figura marcante nesse período da doença foi minha Tia Ruth, que não deixou de visitar sua irmã mais velha nenhum dos dias até o desenlace.


(*) A minha chegada foi uma bênção para meu irmão, que começava sua adolescência e viu as atenções voltaram-se para o novo astro da família, além de me adorar, claro, diz que adorava morder meus pezinhos fofos. Flávio era meu ídolo, chamava-o de Vavá, ele me levava ao cinema, aos jogos do Santos, lia gibis comigo, me ensinou a jogar xadrez, deixava eu tocar seus LP's (incluindo 'Time-Out' de Dave Brubeck, e Bolero, de Ravel, e 'Num Mercado Persa' de Ketelbey, que me marcam até hoje) e, principalmente, me levou numa galeria onde pediu que eu escolhesse um presente de aniversário de 7 anos, ao que eu optei por um disco de capa vermelha cheia de fotografias de quatro rapazes fazendo caretas, que se intitulavam Os Reis do Iê-Iê-Iê, que foi o começo de minha principal paixão (afora a família, claro). Lembro-me também de meu aniversário de 10 anos, quando me foi presenteado Um Dia no Rio de Janeiro, com meu irmão de cicerone. Viemos  de ponte aérea, de Electra II da VARIG, e voltamos à noite, de navio, que chique, e nunca me esqueço da imagem de Vavá debruçado na grade do convés vomitando um monte, quando então me lembrei do alerta que ele me dera, todo forte e experiente, sobre enjôos, sendo que eu passei muito bem...
Iracema e Saul -1944
Meu pai, Seu Saul, como o chamavam, filho de portugueses, quatro irmãos, foi um self made man, não fez curso superior, mas se virava, lidou com bananas, como o pai, fez dinheiro com corretagem de café, teve uma concessão da CTLP, Companhia Telefônica do Litoral Paulista, que foi encampada pelo governo em 1976, e virou construtor de edifícios residenciais. Casou-se com Dona Iracema aos 24 anos (ela com 19, parece que 5 anos era uma diferença padrão), tiveram o Flávio um ano depois e eu, 13 anos depois do Flávio. Sempre leu muito, tinha uma biblioteca de mais de 1.000 livros. Escrevia muito bem e começou a escrever um livro, um romance autobiográfico, na sua velha Olivetti, mas o deixou pela metade. Aprendeu inglês sozinho, mas era muito esforçado, inclusive meu primo se lembra de quando chegou de seu mestrado nos EUA, meu pai o cercava e perguntava a pronúncia de algumas palavras. Ele adorou quando entrei na faculdade de engenharia, era o seu orgulho ter um engenheiro da família, queria até mesmo que eu me casasse com uma festa no Clube de Engenharia, imagina! Aliás, eu fiz Engenharia Civil porque ele construía edifícios (que interesseiro era eu!), mas no meio do caminho, a construtora faliu, e eu acabei na mão, nesse sentido, mas acabou sendo bom, pois a Petrobras entrou na minha vida e me possibilitou uma carreira segura e interessante. E esse foi mais um motivo de grande orgulho para ele! Moramos sempre em apartamentos alugados,  até  meu pai decidir pelo primeiro imóvel apenas aos 51 anos de idade, no Gonzaga, perto da praia, na minha querida Santos. Gostava de um bom whisky, mas nunca o vi alterado, aliás, quando eu era pequeno, ele me dava uns golinhos, eu gostava, ficava alegrinho, ai ai ai... Fumou muito, e só parou mais ou menos perto dos 60 anos, quando teve um enfarte e ganhou algumas safenas. Sempre que estava parado, tinha um cigarro apagado entre os dedos, ou na boca, até ficar empapado, muita saudade ele tinha do desgraçado artefato. Temeroso, começou logo depois da cirurgia de peito aberto a fazer caminhadas na praia, fez boas amizades lá, e usava as escadas do edifício ao menos duas vezes por dia (e eram 15 andares). Mesmo com o exercício constante, o histórico fumante cobrou seu preço fatal, e ele teve um segundo enfarte, desta vez fulminante, numa agência bancária, sentado, conversando com seu gerente. Minha maior mágoa é que não teve a satisfação de ver meu relativo sucesso profissional, imagino como ficaria feliz em saber de minha primeira viagem internacional, um ano depois de sua passagem. E que viagem.... para a China, fazendo escala em Tóquio. 

Mamãe, eu, Papai, 1969
Meu pai era um gozador visceral e tinha uma gargalhada extremamente alta e contagiante: contou que certa ocasião em plena Praça da Independência, parou, apoiou seu guarda-chuva no chão e olhou para o alto, apontando ereto para um ponto fixo no céu, ao que um transeunte parou também para olhar, depois dois, três, DEZ, após o que saiu andando sem dizer palavra, deixando o grupo para trás, manuseando sua Tribuna. E meu primo Vinicius, lá de São Bernardo, me lembrou de outra que havia esquecido e que vem ao encontro dessa fama: ele gostava de pegar as crianças (meus primos e eu) e meu tio Juarez e levava a passear no seu enorme Galaxie (*), enquanto as irmãs Iracema e Edméia ficavam em casa, e vez por outra parava um transeunte para perguntar instruções de como chegar em um lugar, Parque do Ibirapuera, por exemplo, e o cara explicava, e Seu Saul respondia com outra pergunta: 'Mas a quantas milhas daqui?" ... "Ahn?" e depois ... "Será que está chovendo lá?" ... e nisso nós todos segurávamos o riso, e depois da terceira pergunta, ele engatava a primeira e saía em disparada, para gargalhadas gerais. Verdadeiro bullying! Esse  era o velho Saul!! Ele ria muito também com o espetacular LP 'Eu Sou o Espetáculo', de José de Vasconcelos, o primeiro comediante stand-up do Brasil, que ouvia comigo menino ainda e me explicava o que eu não entendia, foi muito marcante pra mim, que volta e meia colocava para ouvirmos juntos, e rir tudo novamente. Lembro também que fazia questão de pegar firme as bochechas dos meus primos e balançar as cabecinhas, ele achava a maior graça, meus primos, nem tanto, hehe. As 'vítimas' dele não eram apenas humanos, entretanto! Tínhamos um papagaio, que aprendeu a clamar 'Martaaa, Martaaa!!', nossa ajudante de décadas, antes e depois de sua (dele) morte, para que lhe trouxesse o café com leite com pão molhado, que ele adorava, mas conto sobre ele porque Seu Saul judiava do pobre, coitado, jogava aquelas batatas pequenas nele que matava no bico e mandava de volta, mas, pior, adorava jogar um rolo de barbante, no qual o louro se entrelaçava até ficar imóvel, todo enredado, dava um trabalho pra gente soltar o bichinho, fosse hoje, meu pai seria denunciado à sociedade protetora dos animais... Em reuniões, sempre tinha piadas a contar (e gargalhar após elas), e se o público permitia, passava das piadas de salão para as mais picantes, para desespero de minha mãe, e depois de minha madrasta Ely. Um bom par para ele era o amigo do Flávio, o Paulo Roberto, nosso conhecido desde 1966, que a Ely definia como 'enfant terrible', e com quem se encontrou várias vezes na fazenda do meu irmão no caminho de Campos do Jordão, que me disse que perguntou a ele por que ele era tão gozador, ao que o velho Saul respondeu: "Por necessidade!". 

Posso encaixar naquela faceta de meu pai o jeito pelo qual ele decidiu qual nome me daria. Botara na cabeça que eu teria que ter um nome de alguma figura proeminente da Grécia, cuja cultura admirava muito. Fez uma lista, foi á janela da sala, não me lembro em que andar era no Edifício Lutécia, onde nasci, e começou a gritar a plenos pulmões, para a sempre movimentada Avenida Ana Costa: Demósteneees!!, Sócrateees!!, ... e observava a reação das pessoas ... Heráclitooo!!, Pitágoraaas!! ... e observava ...Homerooo!!, e então parece que gostou da reação que teve a este último, quem sabe algum sinal de positivo da época e decidiu por ele. Eu não gostava muito de meu nome, até que soube dessa história, aí até senti um alívio. Bem, na verdade, eu achava meio estranho mesmo assim, mas aos poucos fui gostando, mais e mais, deu-me uma certa distinção, por exemplo, apenas 8 entre 80 mil colegas da Petrobras tinham meu nome (sem contar os nomes duplos, como Paulo Homero e coisas do gênero). Além disso, não posso reclamar de um nome que lembra a um  dos maiores poetas da História, autor de Ilíada e Odisséia, e também, qualquer ação de minha parte era uma ação homérica, o que denota uma certa grandeza já na qualificação! Hoje, tenho orgulho! Inda mais quando agregado ao sobrenome, Ventura.
(*) Aliás, aquele carro era uma sensação, sempre que passeávamos havia uma disputa sobre quem ficava no banco da frente com meu pai. Como ele era largo, o câmbio (de 3 marchas) era na direção, e o banco era contínuo, acabava que ao menos dois de nós íamos juntos com ele, escorregando pra lá e pra cá nas curvas, que invariavelmente ele fazia muito rápido. Era um pé de chumbo meu pai... 


Quando nasci, seu Saul tinha 38 anos e caminhava para os 50 na minha infância, o que não impediu que fosse um grande companheiro! Ele sempre me levava aos Parques de Diversões (Shanghai era o nome de um deles) que se instalavam nas praias de Santos, trem-fantasma, roda-gigante, estava sempre comigo, mas sua preferência (e a minha) era a hora dos carrinhos bate-bate, que se ligavam eletricamente à tela de cima da pista, e ria sem parar quando batia seu carro no meu. Saíamos de uma corrida e entrávamos na fila para outra. Adorava maçãs, que comprava aos baldes, e se divertia arremessando pedaços já descascados para mim, lá do outro lado da sala, que era grande, o que me desenvolveu uma certa habilidade de goleiro. Outra coisa em que se amarrava era tremoços, que comprava nas barraquinhas da Biquinha de São Vicente, sempre que íamos à Praia Grande e ficávamos na sempre presente fila da super-charmosa Ponte Pênsil, e nunca deixava de comprar dos ambulantes aquelas bananadas envoltas em papel fino, açucaradas e deliciosas, bem como o querido biju, que não podia faltar, ainda me lembro do barulho que o reco-reco dos vendedores fazia. Não era à toa que eu sempre estava acima do peso. E falando em fila de automóveis, lembro-me da gastrite dolorosa que meu pai tinha, e que contava que na fila da balsa do Guarujá, onde ia para acompanhar a obra de um prédio, e que já durava pra lá de hora, tendo que comer alguma coisa para aplacar a dor, lançou mão do próprio bilhete da balsa! Meu pai adorava viajar de carro com a família e o que me lembro bem são quatro lugares: Águas de Lindóia, São Lourenço, Guarapari e Campos do Jordão, além claro, de muitas vezes que íamos a São Bernardo, logo ali na Via Anchieta, para visitar meus queridos tios Juarez e Edméia, ele levava sempre no carrão uma pipa e uma bola de capão. Interessante que com tanta praia em Santos era ali o único lugar em que me ensinou a empinar papagaio, num terreno baldio lá perto da casa do tio. Mas o que mais gostávamos (eu e meus primos), era quando ele dizia: ‘Vamos jogar bola pro céu?!’ chutar a bola de capão bem alto, a bola chegava a sumir de vista mas depois voltava (claro!), e a gente gritava, ele tinha umas pernas poderosas. Sobre a viagem a Guarapari, lembro-me que descemos com as malas lá do Edifício Independência, na Praça Idem, aonde morei meus primeiros 10 anos, e corria pelos corredores batendo nas portas dos outros apartamentos perguntado 'Tem kiança pá bincá?'. Surpresa triste naquela madrugada, nosso carro, então um Aero Willis, não estava lá, havia sido roubado, não sei o que foi feito mas o fato é que no dia seguinte, a carro estava de volta, e partimos para a viagem que iria me proporcionar o primeiro banho de mar da criança naquela longínqua cidade do Espírito Santo, aos quatro anos, pois eu me recusava a entrar no mar, ali, tão pertinho de casa, vai entender! Águas de Lindóia e São Lourenço eram tipo hotel fazenda e Campos do Jordão, bem, de Campos do Jordão eu falo depois no papo sobre meu irmão!!!

O velho Saul gostava de receber. Nos domingos à tarde, reunia a família, mormente tios Nemércio e Ruth e os primos Carlinhos e Marcos Cézar, que moravam ali perto, e quem mais viesse,  para fazer jogos culturais, ou de mímica, com pontuação e tudo, nunca me esqueço de um deles, em tinha que se achar as palavras de um certo tema começando com uma certa letra, e tal, e sempre que ele era chamado a escolher o tema, dizia: 'Deuses, Túmulos e Sábios!". Nesse quesito, nunca me esqueço de uma citação de Jesus que ele gostava de lembrar (ele não era religioso, mas muito estudioso, como já disse) com toda a entonação e pompa necessária à profundidade do conselho 
Procurai e achareis!
Pedi e dar-se-vos-á!!
Batei e abrir-se-vos-á!!!
Quando chegamos a um apartamento um pouco maior que o da Praça da Independência, fez algumas vésperas de Natal lá, chamava mais gente, e vinham sempre lá de São Bernardo os queridos tios, e os primos Vinícius (que tinha a minha idade) e Valéria, esta última, mais jovenzinha, afilhada de minha mãe. E foi Vinícius quem me lembrou como foi o último desses Natais, em 1970, quando meu Tio Juarez, também muito gozador, desceu a serra já meio alto, vestido de Papai Noel em seu Fuscão vinho novinho em folha, adentrou ao apartamento cantando canções de Natal, Ho-Ho-Ho, com seu sininho e saco de presentes, tudo bem, só que entrou na cozinha e deixou um pacotinho dentro do forno onde se assava um suculento peru .... porém, eram bombinhas de São João, aaaah, e pouco depois sente-se um pequeno abalo sísmico, e a cena seguinte era um palco de guerra, com pedaços de peru espalhados até o teto da cozinha, tendo um deles chegado à área de serviço e entrado na gaiola de nosso pobre e sofrido papagaio. Dona Iracema não acreditava e Seu Saul ria aquela gostosa gargalhada que só ele tinha! 

Aquele nosso apartamento também se acostumou a suas manias. Marcante era sua hipocondria. Além ter uma divisão do armário do corredor só de prateleiras com remédios do chão ao teto, mantinha um punhado deles à mão na mesa ao lado da confortável poltrona da sala, além de um tubo de oxigênio a postos para emergências, que eu não me lembro de ter sido usado para nenhuma emergência, mas sim, apenas para ele sentir aquele frescor!!  Mania também ele tinha de estocar coisas, em grande quantidade, tipo papel higiênico, sabonete, pasta de dente, enlatados, sempre da mesma marca. Outro costume dele era assistir televisão sem o som.... mas me lembro que ouvia atentamente quando tinha um artista que gostava na televisão, um Jair Rodrigues, um Raul Seixas, um Frank Sinatra, e um exemplo que me lembro bastante foi aquela gravação de vários astros americanos cantando 'We Are The World', ele admirava muito Michael Jackson. Na época de Natal, a casa era invadida por nozes e castanhas portuguesas em abundância, reuníamos à mesa para quebrar nozes com aquele alicate especial, e não me esqueço da classe e precisão com que abria as castanhas, com a carne explodindo inteirinha do invólucro, 100% das vezes. E, no quesito abundância, não posso deixar de relembrar aquele hábito que já contei, sobre os pedaços de maçãs arremessados de um extremo ao outro da sala, prontinhos para serem degustados. Parece que ainda ouço ele gritar: “Meroo!!”, já com o arremesso engatilhado! Saudade!  

No quesito educação dos filhos, meus pais fizeram ótimo trabalho, a começar por nos colocarem no melhor colégio da cidade, o marista Colégio Santista, do qual guardo ótimas recordações
Primeiro dia no Santista
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Agradeço o incentivo que meu pai sempre me deu à leitura, até pagando um dinheirinho (que ninguém saiba!!) sempre que eu lia livros importantes, e acima do nível correspondente à minha idade, foi assim que li os dois volumes de História da Civilização Ocidental, de Edward McNall Burns, por exemplo, poucos da minha idade tiveram essa oportunidade, e decerto que esse hábito foi muito importante para meu desenvolvimento, e para que eu tivesse que fazer apenas dois exames nesta vida, um vestibular (quando entrei na Politécnica da USP) e um concurso (quando entrei na Petrobras). Para o Flávio, o esquema era mais rígido, pois se ele não lesse um livro importante por semana, não ganhava a mesada, que era importante pra ele (eu nunca tive, não ligava), então ele chegou a ler Kant, Schopenhauer, Bergson e Pitigrilli aos 15 anos de idade. Sempre agradeço o fato de meu pai ter me colocado em aulas de inglês desde cedo, no CCBEU (Centro Cultural Brasil Estados Unidos), tendo me formado já aos 12 anos, quando já falava inglês razoável, o que me ajudaria muito em minha carreira profissional. Hoje, pontuo que talvez sua iniciativa em me colocar no Inglês tão cedo, possa ter advindo de meu interesse pelas letras das canções dos Beatles. Lembro com carinho que meu pai, sempre atento à minha evolução,  quando eu estava de férias, para eu não ficar à toa, contratava o meu querido primo Carlos Eduardo que era seis anos mais velho que eu (e ainda é... incrível!) para me dar aulas de inglês e matemática, mesmo eu sendo bom aluno, pois sempre fui o segundo da turma. Ao terminar as aulas, muitas vezes ele me ajudava a montar aqueles modelos Revell, de navios, aviões, e action figures, com aquela colinha em bisnaga, com aquele cheirinho delicioso, bom companheiro era meu primo. Lembro que, quando meu pai chegava em casa, pegava nós dois e íamos todos tomar um banho de mar. Aquele meu primo é referência do Jornalismo brasileiro, livre docente, e professor de Doutorado na USP, mas antes, Chefe de Redação e Ouvidor da Folha, e foi apresentador do Roda Viva, correspondente em Washington, enfim, um gênio! Meu pai torcia muito por ele, que se lembra que ficou muito impressionado quando, no seu aniversário de 15 anos, recebeu uma ligação internacional de parabéns de meu pai, não se lembra se da Europa ou do Oriente Médio. Aprendi com meu pai também que não se deve ralhar com motorista acidentado na hora do acidente, porque afinal o cara já está se achando o último dos homens, e olha que eu tive quatro oportunidades de aprender isso em meu primeiro ano como condutor, de meu Passat branco, que me foi presenteado quando entrei na Poli, felizmente depois me tornei exímio motorista, verdadeiro 'piloto de fuga', como definiu um amigo de meu filho, quando o levei correndo ao Aeroporto Santos Dumont. 

Ely, Eu, Neusa, Saul, 1982
Ano e pouco depois de enviuvar, meu pai se casou com a Ely, que fora sua secretária na CTLP, foi lá pra casa e foi ótima companhia para nós. Esteve ao lado de meu pai no meu casamento em 1982, no altar da igreja Santo Antônio do Embaré. Aliás, ela estava sempre ao lado de meu pai, para todos os lados, eram inseparáveis, foi uma bonita história de amor maduro. Também estava ao lado dele na ocasião em que ele teve o segundo e fulminante enfarte, conversando com o gerente do banco em São Vicente. Viúva, mudou-se pouco tempo depois para um sítio em Serra Negra, para viver com seus cinco irmãos, todos solteiros. E acabou morrendo no hospital onde vegetava há bom tempo depois de sofrer um violento e imobilizante AVC. Neste caso, entretanto, acho não houve culpabilidade do cigarro, como foi em outros quatro membros da minha família (pai, irmão, cunhada e sogro) que se foram, não tenho recordação de vê-la com um cigarro na mão.

Ely tinha Fittipaldi no nome, era parente de Emerson e Wilsinho, na verdade, prima de 1º grau, o velho Wilson era seu tio, mas não tinha muito relacionamento com eles. Houve outra celebridade na vida dela, pois o ex-Presidente Jânio Quadros era seu padrinho de nascimento. Convidado para a cerimônia do casamento civil da afilhada com meu pai, Jânio aceitou com prazer e esteve lá em casa, alguns anos antes de se candidatar a Prefeito de São Paulo (e vencer, com o gostinho de limpar com álcool a cadeira de couro em que Fernando Henrique havia sentado, achando que já havia ganho a eleição...). Claro que ele foi o centro da celebração, até um repórter esteve lá, e brindou a todos com suas citações bem humoradas, povoadas de mesóclises. Não cheguei a ouvir a mais famosa delas ("Bebo, sim, porque líquido é... fosse sólido, comê-lo-ia!"), mas decerto que a fama de especialista em 'arregaçamento' de garrafas de whisky em sequência foi amplamente confirmada.... saiu cambaleando de casa. Felizmente, estava sóbrio o suficiente para provocar o grande momento da festa. Antes de pegar o carro, lembrou-se de uma coisa, tocou o interfone lá embaixo, subiu de novo e disse: "Voltei para pegar o melhor presente que eu iria receber hoje!" que Dona Edméia, minha tia, muito gozadora, havia lhe dado, com essa qualificação, e ele esquecera de levar. Era uma vassourinha que ela comprara numa loja de 1,99 e embrulhou direitinho, e disse que ia dar para ele, para desespero de meu tio Juarez (o Presidente o abraça, na foto), que achava que ela seria presa! Dr. Jânio não apenas pegou o embrulho, abriu-o, e quando viu o que era, riu muito, já com todo mundo brindando novamente, copos de whisky levantados, e cantando "Varre, Varre, Varre, Vassourinha!". Aliás, neste ângulo da foto, concluo que meu pai lembra o Jorge Amado!

Aliás, notando a cor clara da roupa de meu pai, que não lembro se era um paletó ou um slack, sua roupa preferida, aquele 'conjunto esportivo formado por camisa e calça, ambas do mesmo tecido, podendo ser de seda ou outros tecidos' (fui pegar a definição na rede). Acho que não, pois slacks eram para ocasiões mais informais. Ele gostava de usar calças de linho, na cor bege a maioria das vezes, feitas sob medida, e lembro como ele recomendava que tivessem bolsos grandes, que iam quase até os joelhos. De forma que pudessem acomodar, claro, alguns itens de primeira necessidade, como remédios, um biscoito, uma pequena maçã(!!), alguma coisa para ler e, claro, aquele maço de dinheiro arrumadinho de notas ordenadas por valor, que ele retirava e fazia 'ventinho', sem cerimônia, quando precisava pagar alguma coisa, em qualquer lugar, em ambientes fechados ou no meio da rua!! Acho que hoje ele teria um pouco mais de temor em adotar tal procedimento, né? Bem, voltando ao slack, quando fui procurar a definição na rede, acabei vendo um link com imagens de Jânio Quadros, abri e vi que ele popularizara a vestimenta quando assumiu a Presidência, lá em 1960, e a usava em seus despachos, como forma de aplacar o senegalês calor da nova capital federal. Deram ao modelito o singelo apelido de 'Pijânio'. Por isso, resolvi colocar esta característica de meu pai neste 'capítulo' sobre a queridíssima Ely, que também se foi muito cedo desta vida.

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Um bom goleiro! (perdi esta imagem, que pena)
Lembra de Campos do Jordão, o destino predileto de nossas viagens de carro? A cidade tem que abrir o capítulo sobre meu irmão Flávio. Foram muuuitas as vezes em que estivemos naquela cidade da Serra da Mantiqueira, conhecida como A Suíça Brasileira, que, à época de minha infância, tinha uma serra cheia de curvas que levava hora e meia para ser vencida. Hoje, é uma serra sem graça... Quando meu pai diminuiu o ritmo de visitas à cidade, era o Vavá quem me levava, junto com a querida Nídia, que viria a ser minha cunhada, e que enjoava seriamente na serra, passava bem mal. Ficávamos sempre no mesmo hotel, que disputava a primazia da cidade, aprendi a andar a cavalo lá, era tão legal, que meu irmão, que já ia lá desde acho que antes de eu nascer, disse: "Um dia eu serei dono desse hotel!" meu pai me contou ... e foi, o que seria seu maior sucesso e também sua perdição. Administrador de empresas formado, pós-graduou-se em Marketing, trabalhou na incorporadora do meu pai, não sem muitas brigas, que sempre foram frequentes, pois ele não era fácil. Nunca quis ter patrão. O histórico agitado de adolescência incluiu no currículo uma chamada às duas da manhã a meu paciente pai para ir recuperar o carro que pegara escondido, atolado numa valeta em outra cidade da Baixada Santista. A par disso, contraiu surdez total do ouvido direito numa cabeçada de futebol, o que fazia que as pessoas sentadas ao lado do motorista tivessem que elevar o tom para serem ouvidas. Foi sempre namorador, apesar de tímido, e sempre gaguejava no primeiro contato, mas era bem sucedido porque era bonitão, atlético e inteligente. Praticava muito esporte e foi campeão juvenil de voleibol no Atlético Santista, e no futebol, depois daquela cabeçada que lhe tirou a audição, passou para o gol, e foi ótimo goleiro, ganhando o tricampeonato no Científico, jogando pelo Grêmio São Luiz, que agregava apenas alunos do Colégio Santista (ah, como é bom esse Facebook para ter acesso a relíquias, como esta foto!!).


Fotos de divulgação de Flávio Voven
Ápice de sua história jovem foi quando, mais tarde, já em seus 20 anos, apesar de constar que cursava Medicina Veterinária na USP de Botucatu, na verdade passava boa parte de seu tempo em São Paulo tentando embarcar no ritmo da juventude, o que meu pai veio a descobrir de supetão, na TV, ao assistir ao Programa Júlio Rozemberg, num singelo sábado à tarde, que anunciou "O novo astro da Jovem Guarda ... Flááávio Voveeen!", seu nome artístico, com as inicias de nossos nomes do meio e a metade do final. Meu pai quase teve um ataque, enfim, mas nosso Voven até gravou um compacto, que ficou até interessante! Uma das canções, "Desta vez eu Vou Ganhar", rock básico e legal, mas com um órgão espetacular (preciso encontrar o CD que ainda temos aqui). A segunda, que tinha até uns metais legais, mas o especial era uma letra que mostrar-se-ia profética, que se chamava 'O Solitário'. Quem tiver curiosidade, pode ouvi-la neste link. Prestem atenção na letra e depois lembrem-se dela quando lerem os últimos relatos da vida dele. Vendeu uns mil compactos, não foi o suficiente para se animar na profissão. E também não concluiu a Veterinária, aliás, nunca fez direito mesmo. Decerto, sua intenção era a veterinária de animais grandes, pois já era grande sua paixão por cavalos.

Criador - Leiloeiro
Firmou-se em Santos novamente, trabalhando com o Velho Saul (*), e estudava Administração de Empresas à noite. Foi o orador da turma da faculdade quando se formou. E aí, já casado e com um filho, bem relacionado que era, conseguiu um empréstimo da Nossa Caixa (a do Estado de São Paulo), e comprou o sonhado hotel, com uma dívida a pagar em 10 anos. No meio do processo, separou-se de Nídia, sua primeira esposa (**). Flávio foi um ótimo hoteleiro, elevou o hotel à categoria 5 Estrelas, criou um Centro de Convenções que ocupava a baixa temporada, e ficou muito bem de vida, comprou uma fazenda ali próximo na descida da serra, onde criava cavalos (parte da profética letra, que citava que o 'Solitário' cavalgava), exerceu a prática de leiloeiro, que fazia muito bem, tinha um vozeirão, em pregões de cavalos. Teve até uma estância no Rio Grande do Sul, enfim, podia se definir como um homem rico. 


(*) inspirado por estas minhas memórias, o amigo Henrique Mello disponibilizou uma declaração do Flávio sobre essa época, em comentário de uma publicação no Facebook, direta do Guarujá, que reproduzo aqui: "Da próxima vez que estiveres por aí, ao passar por Pitangueiras, passe pela rua Cavalheiro Nami Jafet 162. veja o Ed. Ventura Plaza e depois na próxima praia depois do Tombo, nas Astúrias, em frente ao Costa Esmeralda, o Ed.Bourg La Reine, também...Obras construídas por seu amigo aqui, em 1978. antes da era Vila Inglesa, que começou em 79...Foram 2 dos 15 empreendimentos que realizei, Todos na Baixada Santista. Entre 67 e 79, em São Vicente e Guarujá. Andei trabalhando como um cavalo nesta vida. Milhares de m² de área construída. Trabalhei muito e me orgulho disso...Longa e feliz vida para você e para a tua família, meu caro amigo Henrique."


(**) Eu adorava minha cunhada Nídia e o amor era recíproco. Conversava muito comigo, e deu ao Flávio seus dois filhos, Leandro e Conrado, além de uma menina, Flávia, que morreu ao nascer. Era a oitava de nove filhos de seu João e Dona Fortunata, todos com nomes começando com N, muitos dos quais eu conheci em viagens, tanto para Itapetininga (sua terra natal) quanto para Olímpia onde um deles morava, e onde comi as primeiras mangas no pé de minha vida, e também as últimas. A segunda vez em que usei meu terninho de veludo marrom foi no casamento dela, em 1970, um dia muito feliz, porque eu a amava, mas também triste porque iria ter menos o Vavá perto de mim.

Nídia, Flávio, Leandro, Conrado, 1982
Nídia nunca comprou a ideia do hotel, sempre achou muito arriscado, e também não suportou a galinhice do meu irmão, não dava mesmo, e acabaram se separando. Teve um namorado ou dois, mas estava sozinha quando teve um AVC aos 53 anos de idade, decerto que o cigarro, que fumou inveteradamente até o último dia, teve participação importante no ataque fulminante. Nunca me esquecerei que, mesmo fula com meu irmão, ela aceitou ser minha madrinha de casamento ao lado dele, e no altar, eu fazia questão. Nunca me esqueço também de uma ocasião em que a Neusa assustou a querida Nídia, quando esta foi visitar-nos no Rio. Ela não conhecia ainda o Felipe, já com 10 anos, e quando o apresentamos, Neusa quis brincar com ela e disse que Felipe era o seu amigo Mark, que apareceu primeiro na frente dela, que é lourinho de olhos azuis, ao que ela olhou para a Neusa com olhar inquisitivo e disse: 'Neusa??!!'. Logo depois, o Felipe de verdade chegou, ele era a minha cara, e o embuste acabou, para gargalhadas gerais!!
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ai, ai, ai, perdi essa imagem também...

A fazenda do Flávio em São Antônio do Pinhal, vizinhança de Campos de Jordão, na descida da serra, era uma classe só, seu escritório com visão panorâmica, decorado em tons ingleses, onde fumava seu cachimbo delicadamente abastecido com fumo importado Half and Half, sua mesa de jantar era para 20 pessoas, o salão de estar no andar de baixo era enorme, tinha vários ambientes e era polvilhado de poltronas gostosas. Fui uma vez lá, com Renata ainda pequena e ela adorou passear de moto pela fazenda com ele, temos uma filmagem desse momento. Renata adorava o tio 'Fávio', o 'pimo Eando' e o 'Pimo Coado', mas pouco os viu ao longo da vida, caminhos diferentes que tomamos. Flávio era cercado por cachorros, um deles um pastor alemão lindo e pacífico, que deixou Renata colocar a mão na boca dele, dentro, sem fazer nada, para espanto de todos nós. Ali, Flávio já estava com sua nova família e ali meu pai esteve algumas vezes, já depois de seu primeiro enfarte, que aproximou os dois, pois Flávio esteve dia e noite junto a ele no hospital, quando meu pai pediu que ele nunca deixasse de me amparar. Quis o destino que o inverso acontecesse no final. Quem está com Flávio na foto é o Paulo Roberto, aquele que se divertia com os duelos de piadas com Seu Saul e era chamado de 'Enfant Terrible' pela Ely.

Flávio contava com satisfação um episódio da época da opulência. Havia racionamento e filas para comprar combustível, ele estava em São Paulo, numa perua importada enorme, com sua nova família como testemunha, distraiu-se um instante na fila e um fusquinha entrou à sua frente e, não contente com o feito, seu motorista desceu, foi até a janela do meu irmão e disse: "O mundo é dos espertos!", ao que imediatamente Flávio colocou o câmbio automático no Drive, soltou o freio e o carro enorme deslizou dez metros até parar no motor do fusquinha do abusado, que começou a soltar fumaça, enquanto o seu enorme para-choque nada sentiu. Flávio deu, então, marcha-a-ré até o ponto onde estava o atônito 'esperto' e disse: "O mundo é dos ricos!". Merecido, né, fala a verdade!

Hoteleiro - Escritor
Ocorre que, depois que saldou a dívida do hotel com o banco até o último centavo, ao final dos 10 anos, o mercado hoteleiro entrou em crise (a década de 1990 é conhecida com terrível para o setor), parece que Flávio se desestimulou do negócio, resolveu vender tudo, hotel e a fazenda, e foi para Orlando, com sua nova mulher, os filhos dela e o Conrado. Leandro ficou com Nídia em São Paulo. Em Orlando, Flávio teve dois enfartes e adquiriu a companhia de safenas e mamárias, com uma heart condition que o permitia utilizar vagas de 'handicapped' em estacionamentos, o que era contestado em um lugar ou outro, sendo que numa das ocasiões, um policial negão de quase dois metros questionou sua condição, dizendo: 'You don't seem to be handicapped!", ao que Flávio respondeu, do alto de sua segurança: "You don't seem to be a doctor!". Após o espanto, o guarda sorriu, e foram tomar um café e tornaram-se amigos. 

Bem, voltando ao tema rico/pobre, parece que ele se desligou do processo de venda do hotel. Quando se apercebeu, o comprador não pagou o que devia e ele ficou sem o hotel e sem o dinheiro. Não conheço os meandros do que o levaram a esse fenomenal calote. Acabou se separando da segunda mulher, porque afinal continuava bem saidinho. Da briga, ele saiu da casa com seu carrão esportivo, e saiu pelos Estados Unidos, foi de Orlando ao Grande Canyon, entre Colorado e Nevada, onde realizou um de seus maiores desejos... ele não foi nas encostas, como a maioria dos turistas fazem, mas ao fundo daquela depressão magnífica, escavada pelo Rio Colorado durante milhões de anos, e cavalgou... provavelmente juma das últimas vezes... pois depois começou a derrocada.

Quando voltou ao Brasil, com o Conrado. Flávio e filhos tentaram recuperar o hotel na Justiça, conseguiram por um tempo a duras penas, mas perderam tudo novamente. Flávio enamorou-se algumas vezes, chegou a apresentar uma delas como esposa, uma mulher de muita classe, quando veio no meu aniversário de 50 anos. Em suas tentativas de atividade remuneratória, chegou a Secretário de Turismo de Campos do Jordão, decerto a única vez que teve um patrão, mas depois, nunca mais nada deu certo, inclusive uma candidatura fracassada a Prefeito da cidade logo depois. Os amigos sumiram. Acabou por ter como única renda o BPC do INSS, que começou a receber aos 65 anos (um salário mínimo), e do qual usava boa parte para pagar um ótimo seguro saúde, o PREVENT Sênior (hoje tão notório), tão bom que nunca passou por nossa ideia ele morar conosco aqui no Rio, onde não teria essa cobertura, para não perder a ótima cobertura do plano, que o curou de um câncer de próstata e o salvou de uma embolia pulmonar, com tratamento em ótimo hospital.

Flávio adorava aqueles filhos (olha só que família linda!), entretanto às vezes exagerava nos presentes que a opulência, que viria a terminar, permitia. Apoiava incondicionalmente seus projetos e iniciativas, a destacar uma do mais novo, o Conrado, que jogava bem o futebol (soccer) e tinha uma forte perna esquerda, o que acabou, à época em que estavam nos Estados Unidos, atraindo a atenção de um técnico de futebol americano colegial, que via nele o potencial para ser um ótimo kicker, aquele cara que só entra para tentar um field goal, ou um ponto extra após o touch-down, e que estava em falta no 'mercado' local. Flávio virou fã e apoiador Número 1, destacando-se a ponto de ser eleito o pai de jogador mais atuante, pelos demais pais, no time em que Conrado jogava, até conseguindo uma reportagem para o filho num jornal local. A coisa não vingou, infelizmente, e quando voltaram ao Brasil, Conrado embrenhou-se em uma atividade de risco que causou a maior aflição da vida de meu irmão: apenas e tão somente pa-ra-que-dis-mo! O pai não expressava seus receios, sempre apoiando os projetos do filho. Entretanto, num salto em Boituva, no interior de São Paulo, ele não avaliou bem a equação dos ventos num certo e terrível dia, o velame colapsou e Conrado teve queda livre de uns 12 metros de altura, num canteiro de grama de uma rodovia, entre uma pista e outra, a grama foi a sorte, mas ficou entre a vida e a morte, no hospital mais caro de São Paulo, que bom que voltou e está ótimo, casou-se com uma ótima mulher e mora em Orlando.

A imagem pode conter: 13 pessoas, incluindo Homero Ventura e Neusa VenturaMeu irmão acabou solitário, como a letra da música que gravara décadas antes, num apartamento meu em São Paulo, sustentado por mim nos últimos anos. Antes, chegou a morar conosco por alguns meses, quando brigou com a nova companheira (ou ela com ele), da época das tentativas na política. Foi bom aquele tempo no Rio, estava sempre com a gente, víamos DVDs, íamos ao cinema, aos shows da Baleia, e até a um jogo do Santos em São Januário. Acabou voltando para São Paulo, para uma nova chance de convivência, até que não deu mais para ela, e ele ficou sozinho de novo, e dessa vez não mais voltou a ficar com a gente por causa daquela questão do plano de saúde. Leandro morou perto sempre que podia, foi um bom companheiro e estava junto quando o pai teve aquela embolia, e o levava nas consultas médicas e de radioterapia. O último Natal, em 2014, ele e o Leandro passaram com a gente, na casa de meus compadres na Barra. 

Flávio estava magoado com os erros que cometeu (especialmente com Nídia, minha cunhada querida), com os amigos que sumiram, chegou a pensar numa solução final, mas desistiu e acabou seguindo, estava sereno. Conversávamos por telefone praticamente todos os dias, quando eu voltava do trabalho, no bluetooth do carro, sempre tinha boas histórias, e falávamos do Santos, e de clássicos do cinema. Ele se tornou mais religioso, místico até, e contava as visões que tinha com o pai. Nos últimos meses de sua vida, Leandro tentava a vida em Santos, e Flávio ficava só, no apartamento. Tive muita, muita sorte mesmo, que a minha Turma da Politécnica 1980 marcou um churrasco de confraternização em novembro de 2015, eu fui sozinho, de ônibus, pra São Paulo, e passei a manhã com ele no apartamento. Foi a última vez que o vi... Exatamente UM MÊS depois, em 15 de dezembro, uma segunda-feira, Flávio teve um ataque cardíaco após uma caminhada de 20 metros a caminho de casa, em São Paulo, numa segunda-feira.  No meio do trajeto, desabou de seu metro e noventa, na esquina de casa. Ele vinha de um momento feliz, mas parece que sabia o que ia acontecer. No final de um prolongado almoço de fim de tarde no restaurante japonês de sempre, ele abraçou a todos, desde os proprietários até os atendentes e a cozinheira, disse que gostava muito de todos eles, e pediu que anotassem o telefone do Leandro, seu filho. O ataque foi provavelmente resquício daquela embolia pulmonar, e do cigarro que voltara a fumar, mais um da família que foi embora por conta do maldito vício, que somente parou durante um interregno de poucos meses. 

Leandro disse que o pai até parecia sorrir quando o encontrou, já no hospital, chamado que foi pelo dono do restaurante, que fora junto com ele na ambulância. No último encontro familiar, no sábado anterior, na casa de um primo em Campinas, uma benção, pois viu primos queridos e a Tia Ruth, que não via há anos, num churrasco de aniversário em que conversaram muito, onde Flávio declarou que gostaria de ser cremado (mais uma prova que parecia saber do fim). Assim o fizemos. A cerimônia foi simples e linda, a que atenderam uns poucos parentes e quase nenhum amigo (avisei aos que conhecia), escolhi duas canções que ele adorava, 'What a Wonderful World', o tema de 'Em Algum Lugar do Passado' e a Prece de Cáritas ao som de Albinoni (aqui, na voz de minha filha), e desabei quando aquele caixão enorme emergiu do chão, o Vavá com sua face serena, imóvel. O que fez da vida aquele meu irmão querido, meu ídolo da infância, e até dos meus filhos, cativante, culto, conquistador, mas também impulsivo, temperamental, e por vezes arrogante, como ele mesmo se definia, que foi ao ápice e chegou ao fundo? Recentemente, sua última companheira firme definiu bem: 'Tenho boas lembranças dele... altivo .... se mostrava forte ....porém em seu íntimo, muito frágil ... em vários aspectos!!!!". 

Enfim, termino minhas memórias, no que se refere à minha família original, que me trouxe ao mundo, da qual se foram pai, mãe, irmão, madrasta e cunhada. Sobre a família agregada, que muito me ensinou (sogro, sogra e cunhado), homenageei em outro texto. Foi gratificante fazer este exercício! Mexeu comigo! Apesar ter escrito 80% deste trabalho em uma carreira só, fui publicando-o em capítulos (foram 13) no Facebook, enquanto aprimorava o relato, com mais memórias que foram surgindo, tanto minhas, guardadas que estavam em algum canto, quanto de lembranças e imagens de alguns primos e amigos, que enriqueceram o conteúdo sobremaneira. Finalizo meu trabalho com esta peça, que posso chamar de Epílogo.

Contei aqui sobre Dona Iracema, mãe, elegante, distinta, classuda, inteligente, diligente, uma mulher além de seu tempo, com um final de vida ausente; Seu Saul, corretor, concessionário, construtor, educador, gozador e com algumas manias, um pai tardio, porém companheiro; Ely, minha madrasta e grande companheira de meu pai em seus últimos anos; Nídia, minha cunhada, de família numerosa, companheira de meu irmão até onde deu, mãe dedicada até ir embora; e, finalmente, meu irmão Flávio, que eu chamava de Vavá até quase gente grande, meu herói de infância, cantor, administrador, hoteleiro, criador, cativante, conquistador, altivo mas frágil, que ficou rico e ficou pobre. Contando com meu sogro, metade de meus oito finados se foram deste plano por causa do cigarro, alguns deles mesmo tendo abandonado o terrível vício muito tempo antes do desenlace. Felizmente, ninguém que segue comigo agora jamais cultuou aquela porcaria... 

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Para completar com um astral melhor, termino com um fato positivo de meu irmão, um legado, em sua complicada vida. Ele completou a famosa trilogia, já tivera filhos, já plantara árvores (muitas), e acabou escrevendo um livro. Assim como nosso pai, Flávio escrevia muito bem. Tinha um vocabulário impressionante, e uma memória de citações incrível, que começou a ganhar quando lia aqueles livros complexos de filosofia que meu pai incentivava. Em algum ponto de sua vida, pegou os originais inacabados do livro do velho e o continuou, e terminou, e publicou, uma obra que intitulou 'Sagasséia', ótima combinação de Odisséia (vou seguir acentuando) com Saga, a da família Vilanova. A base é a nossa família, com alguns relatos de nosso pai e da dele, romanceada, com muitas adaptações, afinal, meu pai nunca foi engenheiro nem Flávio foi diretor de banco. Alguém atento observará que o protagonista Fernando era dono de estância e criador de cavalos, Henrique era seu irmão engenheiro, e seu pai era Saulo, sua mãe América (anagrama de Iracema), e sua mulher era Nadja, e os filhos eram Luciano e Cláudio, enfim, usou as iniciais de todos os nossos nomes para contar a história, com um mix de fatos reais e outros ficcionais. Incrivelmente, o livro ainda pode ser encontrado em muitos sites, por preços que variam ao redor de 5 reais, como vi neste link, e fiqeui feliz com o nível de aprovação dos leitores, com índices nunca menores que 95%, em universos de algumas dezenas de leitores, comprovando a qualidade da escrita de meu pai e irmão.

Na volta da cremação, naquela tristeza e solidão do apartamento, recuperei alguns de seus escritos em seu computador e pretendo compilá-los de alguma forma, em sua homenagem, tem muita coisa interessante. Inclusive um outro livro, que ele não publicou, chamado Leão Negro!

Bem, acho que resgatei aquela dívida e retratei minha família, da melhor maneira que pude.


Obrigado por chegarem até aqui!!!

Acrescento, nesta revisão de 5 anos, uma epifânia, que tive recentemente... lembram que tive essa decisão de escrever sobre meus finados, no Dia de Finados de 2019?

Pois bem, um dia antes, 
1º de novembro de 2019, 
meu pai Saul teria completado 100 anos!!!

Hoje penso que foi um aviso dele, onde quer que estivesse...